Esquerdas devem “denunciar a política de potência”, diz historiador sobre guerra na Ucrânia

Diário Carioca
               Existe uma leitura comum de que tudo que é negativo para os EUA, é positivo para a esquerda. Para o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Aarão Reis, todavia, é preciso ir além para pensar o conflito entre Rússia e Ucrânia. Autor de livros sobre a revolução russa, Reis destaca que esse pensamento é compreensível dado o histórico intervencionista da Casa Branca e a “hipocrisia” de Washington na atual situação, mas é preciso superar os maniqueísmos.
Assim como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi transformada em uma aliança de “ataque”, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, faz uma “declaração propagandística” e sem substância ao tentar justificar a invasão com o objetivo de “desnazificar” a Ucrânia, analisa o historiador. 
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Autor de livros como “A revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917” e “Uma revolução perdida. A história do socialismo soviético”, Reis acredita que a invasão da Ucrânia criou uma ferida “que vai permanecer no longo prazo”. 
“Acho que a posição lúcida das esquerdas é denunciar a política de potência. Então você tem uma política de potência hoje da Rússia invadindo a Ucrânia, mas você teve também uma política de potência ao tentar estender a Otan à Ucrânia. Isso é uma política de potência que deve ser rejeitada. Penso que nessa história, para usar uma metáfora muito comum aos brasileiros, nessa história não têm mocinhos, só têm bandidos. São grandes potências lutando por seus interesses estratégicos, pelos seus interesses econômicos e territoriais. É preciso que as esquerdas não peguem um lado contra o outro, mas denunciem o conjunto. É preciso condenar a invasão da Ucrânia, mas ao mesmo tempo isso não quer dizer que você vai se perfilar, acriticamente, do lado dos EUA e dos estados europeus, já que sua política aventureira e irresponsável de estender os interesses da Otan foi um dos causadores desse conflito”.
Putin é aliado da extrema direita na Europa
Ao anunciar uma “operação militar especial” contra a Ucrânia, Putin afirmou que “desnazificar” a Ucrânia era um dos objetivos. A história dos russos é profundamente ligada à derrota imposta aos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, que Moscou chama de “Grande Guerra Patriótica” e anualmente comemora o Dia da Vitória com grandes desfiles militares na Praça Vermelha. 
“Caros camaradas! Seus pais, avós, bisavós não lutaram contra os nazistas e defenderam nossa pátria comum para que os neonazistas de hoje possam tomar o poder na Ucrânia”, disse Putin. 
Mais de 26 milhões de soviéticos morreram na Segunda Guerra Mundial, enquanto as perdas estimadas dos Estados Unidos são de cerca de 400 mil vidas.
Para Reis, a declaração do mandatário russo ignora a proximidade do Kremlin com os movimentos de extrema direita da Europa e sua exaltação do nacionalismo russo. “Isso é uma declaração propagandística, não tem substância. É claro que existem grupos neonazistas na Ucrânia, existem sem dúvida esses grupos. Mas existem grupos neonazistas também na Rússia. O nacionalismo russo tem tendências extremadas que abrigam grupos neonazistas. Por outro lado, Putin tem toda uma articulação com as extremas direitas europeias, dentro das quais vicejam grupos neonazistas”.
Liderança da extrema direita na França, Marine Le Pen visitou Putin durante as eleições presidenciais de 2017, ano em que seu partido pegou um empréstimo de 9 milhões de euros com um banco russo para financiar a disputa. Outro líder europeu da extrema direita, o italiano Matteo Salvini, é um fã declarado do presidente russo e seu partido assinou um acordo de colaboração com a coligação governista Rússia Unida em 2017. 


Marine Le Pen e Putin no Kremlin. / Presidência da Rússia

Otan “deveria ter sido dissolvida”
Reis reconhece que Moscou tem um argumento forte: a expansão da Otan. Criada durante a Guerra Fria, a aliança militar dos países capitalistas, e capitaneada pelos EUA, fazia oposição ao Pacto de Varsóvia, a aliança militar dos soviéticos. O professor da UFF destaca que a Otan deveria ter sido dissolvida, assim como aconteceu com o Pacto de Varsóvia. O grupo não só não acabou como foi expandido.
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“O ponto forte que os russos têm, que não justifica a invasão, ao meu ver, mas que a torna compreensível é o fato de que realmente [há] uma expansão da Otan em direção à Ucrânia”, diz Reis. “Foi sob a regência da Otan que o Afeganistão foi invadido”.
Desde o fim da União Soviética, a Otan admitiu 14 novos países, muitos deles antigas repúblicas soviéticas. O membro mais recente é a Macedônia do Norte, que entrou na aliança em 2020. A rede militar da Otan ainda conta com mais de 600 bases militares dos EUA em países estrangeiros. 
O risco apresentado pelo expansionismo da Otan é apontado por analistas de relações internacionais de esquerda e direita há décadas. 
Em 1997, o diplomata e historiador estadunidense George Kennan afirmou ao The New York Times que o avanço da aliança militar era um “erro trágico” e injustificado. “Acho que os russos reagirão gradualmente de forma bastante adversa e isso afetará suas políticas”, disse Kennan.
O filósofo Noam Chomsky, em 2018, disse ao Democracy Now que a justificativa para a existência da Otan era proteger os EUA dos soviéticos, mas essa razão deixou de existir com o colapso da URSS. "O que a Otan está fazendo? Bem, sua missão mudou, a missão oficial da Otan mudou para controlar e fazer a segurança do sistema de energia global, oleodutos e etc. E, é claro, ao mesmo tempo atua como uma força de intervenção dos EUA.”
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Sentimento antirusso explica avisos ignorados
Para Aarão Reis, a “radicalização” de uma opinião pública contra a Rússia ajuda a explicar o desprezo pelos avisos dos pesquisadores e a desconsideração com as preocupações de segurança da Rússia. 
Nos Estados Unidos, 77% da população tem uma visão desfavorável da Rússia, de acordo com pesquisa da Gallup publicada no início de fevereiro — e portanto antes do início da guerra. Mas nem sempre foi assim. A série histórica da pesquisa começa em 1989 e mostra que por breves momentos a maioria da população estadunidense já teve uma visão favorável de Moscou. Em fevereiro de 2002, 66% tinham uma visão favorável da Rússia.
Ainda de acordo com pesquisa da Gallup, para 26% da população dos EUA, a Rússia é o principal inimigo do país, atrás apenas da China (45%).
“Há uma radicalização anti-Rússia que deveria ser moderada porque isso não contribui para uma resolução pacífica desse conflito”, diz o professor da UFF. “A opinião pública nos EUA e Europa está sendo muito aquecida numa perspectiva anti-Rússia que me parece que não é a melhor opção para a pacificação dos contendores”.
O caminho para a paz, crê o historiador, passa pela negociação da neutralidade da Ucrânia para que Kiev possa servir como uma ponte entre Rússia, Europa e Estados Unidos. Caso contrário, o mundo corre o risco de cair no "abismo" de um confronto militar de grandes proporções, alerta Reis.
            Edição: Arturo Hartmann


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