O lítio do chile beneficia os multimilionários mas esgota a terra e os povos

Vijay Prashad
Mineração de lítio no Salar de Atacama, Chile por evaporação de água de poços de salmoura. (Foto: Coordenação-Geral de Observação da Terra/INPE)

O salar do Atacama, localizado no norte do Chile e com uma extensão de mais de 1200 quilômetros quadrados, é a maior fonte de lítio do mundo. Estamos diante de um penhasco, olhando para o grande poço, no extremo sul do salar, protegido da vista do público. É ali que as grandes empresas chilenas se instalaram para extrair o lítio e exportá-lo – em grande parte sem processá-lo – ao mercado mundial. “Sabe quem era sogro do rei do lítio no Chile?”, nos pergunta Loreto, responsável por nos guiar até esse mirante para contemplar as brancas areias do salar. Sua resposta não nos surpreende muito: se trata nada mais nada menos do falecido ditador militar Augusto Pinochet, que governou o Chile de 1973 a 1990. Com “rei do lítio” ele se refere a Julio Ponce Lerou, o maior acionista da empresa mineira de lítio Sociedad Química y Minera de Chile (SQM), e genro do ditador.

A SQM e a Albemarle, as duas principais mineradoras chilenas, dominam o salar do Atacama. É impossível conseguir uma permissão para visitar o extremo sul do salar, onde estabeleceram suas operações. As empresas extraem o lítio bombeando salmoura no subsolo do salar e deixando-a evaporar durante meses antes de levar adiante o processo de extração. “A SQM rouba nossa água para extrair o lítio”, declarou em 2018 a ex-presidenta do Conselho de Povos Indígenas do Atacama, Ana Ramos, segundo o Deutsche Welle. O concentrado que resta após a evaporação é convertido em carbonato de lítio e hidróxido de lítio, que logo são exportados, formando as matérias primas chave na produção de baterias de íon de lítio. Aproximadamente um terço do lítio mundial procede do Chile. Segundo o banco Goldman Sachs, “o lítio é a nova gasolina”.

O que faz a necessidade

A propriedade do salar é disputada entre o Estado, os povos originários deste território e as empresas privadas. Mas, como nos disse um membro da comunidade Lickanantay  uma das comunidades indígenas que reconhecem o salar de Atacama como sua morada –, a maioria dos proprietários da terra já não vivem na região. Juan, que se dedica à criação de cavalos e descende de uma família dedicada ao pastoreio, nos conta que as pessoas de lá agora “vivem das rendas da terra. Não lhes importa o que ocorrer aqui”. No entanto, Juan sabe que essas rendas são minúsculas. “O que nos pagam para explorar nossas terras é praticamente uma gorjeta”, diz ele. “Não é nada comparado com o que ganham. Mas, ainda assim, é muito dinheiro”. Para a maioria dos Lickanantay, diz Juan, “o lítio não é um tema porque, embora se saiba que ele é danoso ao meio ambiente, nos está trazendo dinheiro”, diz. “A necessidade leva o povo a fazer muitas coisas”.

Os impactos ambientais negativos da extração do lítio foram amplamente estudados pela comunidade científica e observados pelos guias turísticos da zona. Angelo, um desses guias, nos conta que lhe preocupa que as reservas de água sejam contaminadas devido às atividades mineradoras e que teme o impacto que isso tem sobre a fauna do deserto do Atacama, incluindo os flamingos. “De vez em quando encontramos um flamingo rosado morto”, nos diz. Cristina Inés Dorador, doutora em ciências naturais que participou da redação do novo projeto de Constituição do Chile, publicou diversos trabalhos sobre o declínio da população de flamingos no salar. No entanto, Dorador também disse que poderiam ser utilizadas novas tecnologias para evitar o impacto ambiental negativo generalizado. Ingrid Garcés Millas, doutora em Ciências da Terra pela Universidade de Zaragoza e pesquisadora da Universidade de Antofagasta, destacou em um artigo para o Le Monde Diplomatique que o atual uso da extração do lítio provocou a deterioração das “formas de vida dos povos andinos”. Um exemplo que mencionou foi que, enquanto a indústria do lítio utiliza o abastecimento de água subterrânea, as “comunidades se abastecem com caminhões-cisterna”.

Segundo um relatório da MiningWatch Canadá e do Atlas de Justiça Ambiental, “para produzir uma tonelada de lítio nos salares do Atacama são evaporadas 2 mil toneladas de água, o que provoca um dano importante tanto na disponibilidade da água como na qualidade das reservas subterrâneas de água doce”.

Enquanto isso, na região do Atacama não parece existir um senso de urgência quanto ao debate sobre a extração do lítio. A maior parte do povo parece ter aceito que a extração do lítio chegou para ficar. Entre as e os ativistas há discrepâncias sobre como abordar o tema. Os mais radicais creem que o lítio não deve ser extraído, enquanto outros debatem quem deve beneficiar-se da riqueza gerada por sua extração. Há ainda outros, como Angelo e Loreto, que creem que a vontade do Chile de exportar o lítio sem processamento nega ao país a possibilidade de explorar os benefícios que poderia significar o processamento do metal dentro do país.

Bens comuns naturais

Justamente antes das eleições presidenciais do Chile, em novembro de 2021, entrevistamos Giorgio Jackson, agora um dos assessores mais próximos do presidente do Chile, Gabriel Boric. Ele nos disse que o novo governo chileno estudaria a possibilidade de nacionalizar recursos chave, como o cobre e o lítio. Isso já não parece estar na agenda do governo, apesar da expectativa de que os altos preços do cobre e do lítio possam financiar as tão necessárias reformas no sistema de pensões e na modernização da infraestrutura do país.

A ideia de nacionalização foi discutida na convenção constitucional, mas, ao final, não foi incluída no projeto da constituição, que será votado no dia 4 de setembro. Em seu lugar, a proposta de constituição se baseia no artigo 19 da Constituição de 1980, que estabelece o “direito a viver em um meio ambiente livre de contaminação”. Com a aprovação da nova Constituição ficará estabelecida, no artigo 134, a existência de bens comuns naturais, sobre os quais o Estado “tem um dever especial de custódia, com o fim de assegurar os direitos da natureza e o interesse das gerações presentes e futuras”.

Nos últimos dias do governo do ex-presidente Sebastián Piñera, o Ministério de Mineração do Chile premiou duas empresas – a BYD Chile SpA e a Servicios y Operaciones Mineras del Norte S.A. – com o direito à extração de 80 mil toneladas de lítio (cada uma) durante um prazo de 20 anos. A Corte de Apelações de Copiapó atendeu a um pedido do governador de Copiapó, Miguel Vargas, e de várias comunidades indígenas. Em janeiro de 2022, o tribunal suspendeu o acordo; decisão que foi confirmada em junho pela Corte Suprema do país. Isso não implica que o Chile vá dar marcha-ré na exploração do lítio por parte das grandes empresas, mas sugere que um novo interesse contra a ampla exploração dos recursos naturais está se desenvolvendo no país.

Até 2016, o Chile produzia 37% da cota do mercado mundial de lítio, o que o tornava o maior produtor mundial deste metal. Quando o governo do Chile aumentou as taxas de royalties para as mineradoras, várias delas reduziram sua produção e algumas aumentaram sua participação na Argentina (a SQM, por exemplo, ingressou em uma empresa mista conjunta com a Lithium Americas Corporation para trabalhar em um projeto na Argentina). O Chile atualmente está atrás da Austrália em termos de produção de lítio no mercado mundial, caindo de 37% a 29% entre 2016 e 2019 (com a perspectiva de que sua participação cairá ainda mais, até chegar a 17% em 2030).

A observação de Juan sobre “a necessidade levar o povo a fazer muitas coisas” descreve bem o estado de ânimo entre os moradores do Atacama. As necessidades das pessoas que habitam esta região parecem estar atrás das necessidades das grandes empresas. Os familiares dos antigos ditadores acumulam riquezas às custas da terra, enquanto que as e os proprietários dela – por necessidade – a vendem em troca de gorjetas.

Este artigo foi produzido por Globetrotter e traduzido por Pedro Marin para a Revista Opera

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Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista indiano. Ele é um escritor parceiro e correspondente-chefe do Globetrotter. É editor-chefe da LeftWord Books e diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Ele é membro sênior não-residente do Instituto Chongyang de Estudos Financeiros da Universidade Renmin da China. Autor de mais de 20 livros, incluindo The Darker Nations e The Poorer Nations. Seu último livro é Balas de Washington, com prefácio de Evo Morales Ayma.