Tatiana Teixeira, Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) e Andressa Mendes, Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas
A partir de hoje e pelas próximas seis semanas até dia 20 de janeiro, o The Conversation Brasil publicará, em parceria com o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), artigos exclusivos sobre o Project 2025, o processo de transição presidencial elaborado pelo Partido Republicano que direciona do futuro governo de Donald Trump no caminho de políticas cada vez mais radicalmente conservadoras e protecionistas. O Project 2025 é a mais recente edição de um manual de políticas criado por uma coalizão de mais de 100 organizações conservadoras americanas, mas que tem como principal signatário o ‘think tank’ Heritage Foundation. O documento é um dos principais indicadores das políticas e dos atores das administrações republicanas desde a era Reagan. E nesta sua mais nova versão, ele promete um ‘movimento histórico’ para derrubar o chamado Estado Profundo (Deep State) e ‘devolver o governo ao povo’. Embora Donald Trump tenha negado envolvimento com o Project 2025, vários autores do plano foram funcionários do alto escalão do governo federal durante seu primeiro mandato na Casa Branca, entre 2017 e 2021. Nesta parceria com o TC Brasil, autores vinculados ao OPEU oriundos de diversas universidades escreverão artigos semanais sobre diferentes aspectos da concepção e da implantação do Project 2025. O primeiro deles, abaixo, faz um histórico do manual e de seu principal responsável, a Heritage Foundation.
O Project 2025 é um manual de políticas criado por uma ampla coalizão de mais de 100 organizações conservadoras, mas que tem como autor principal o think tank Heritage Foundation, responsável por moldar políticas e influenciar atores dos governos republicanos desde Ronald Reagan (1981-1989).
Como consta no site institucional sobre o projeto, trata-se de “um movimento histórico, com o intuito de derrubar o Estado Profundo (Deep State) e devolver o governo ao povo”.
Segundo os autores do projeto, os conservadores têm hoje a oportunidade de desfazerem os danos que o Partido Democrata teria causado ao país, com o intuito de resgatá-lo por meio de uma agenda de governo e da atuação de pessoas aptas a executar a agenda proposta desde o primeiro dia da próxima administração de Donald Trump.
Para isso, o projeto se baseia em quatro pilares que abrirão caminho para uma administração conservadora eficaz: uma agenda política, pessoas para trabalhar, treinamento adequado a essas pessoas, e um manual de aplicação dessa agenda em 180 dias.
O Project 2025, também conhecido como Projeto de Transição Presidencial, baseia-se no livro Mandate for Leadership: The Conservative Promise (Mandato para a Liderança: a promessa conservadora), lançado em abril de 2023, que apresenta sugestões políticas para “enfrentar os desafios mais profundos” dos Estados Unidos e “colocar a América de volta aos trilhos”.
Entre as propostas contidas no livro, estão:
(1) a proteção da fronteira, término da construção do muro com o México e a deportação de estrangeiros em situação ilegal;
(2) desarmamento do governo federal, aumentando a responsabilidade e a supervisão do FBI e do Departamento de Justiça;
(3) liberação da produção de energia americana, com foco na redução dos preços;
(4) austeridade nos gastos do governo, para reduzir a inflação;
(5) tornar os burocratas federais mais responsáveis perante o presidente e o Congresso democraticamente eleitos;
(6) melhorar a educação, ao transferir o controle e o financiamento da educação dos burocratas de Washington diretamente para os pais e governos estaduais e locais;
(7) proibir homens biológicos de competir em esportes femininos.
Edições do Mandato para a Liderança são publicadas desde a década de 1980, funcionando como baluartes de ideias políticas conservadoras para os novos governos republicanos. Embora a ficção da originalidade de suas propostas e da amplitude de sua influência tenha sido largamente inflada pela própria Heritage e corroborada pela imprensa, seu impacto é inegável nos governos Reagan, George W. Bush e Trump 1.0.
As seções deste enorme documento de cerca de 900 páginas serão destrinchadas, e suas análises, publicadas no The Conversation Brasil nas semanas que se seguem, até a posse de Trump, em 20 de janeiro próximo.
A Heritage Foundation
A instituição foi criada em 1973 por Edwin Feulner Jr. e Paul Weyrich, então dois assistentes republicanos do Poder Legislativo que contaram com uma ajuda inicial do empresário Joseph Coors, ao perceberem que havia um nicho a ser preenchido. A história de sua concepção se tornou um exemplo de como a ideia certa, na hora certa e com a ajuda certa pode prosperar, assim como um símbolo da nova onda conservadora desse tipo de instituição que se consolidaria da década de 1970 em diante.
Em uma de suas conferências na Heritage, em 1986, Feulner conta que, durante o tempo em que trabalhou no Congresso dos EUA assessorando um republicano, era comum chegarem a sua mesa análises vitais sobre projetos de lei em curso, mas quase sempre depois de uma votação-chave – ou seja, tarde demais. O timing tinha a ver com o cuidado de não influenciar o processo político diretamente, sob risco de os think tanks envolvidos perderem a isenção fiscal autorizada pelo IRS (a Receita Federal nos EUA). Ali, Feulner viu uma janela de oportunidade, que mudou o perfil e modo de atuação desta comunidade, engajando-se de maneira definitiva e agressiva na “batalha das ideias” contra o “establishment liberal” (ou progressista).
O papel dos think tanks na política dos EUA
Nos Estados Unidos, a importância desses institutos (a crença exógena de que são pertinentes e até indispensáveis, ou ainda, sua autopercepção de relevância) é enorme. Os think tanks são considerados fundamentais no sistema político americano, marcado pela fragmentação e pela nítida separação dos Poderes Executivo e Legislativo, o que cria uma alta porosidade aos atores externos; pela divisão aguda entre União e Estados, ampliando o campo de atuação dos think tanks; pela forte tradição filantrópica e voluntarismo cívico; e por um regime fiscal que estimula a doação de recursos e favorece o surgimento de organizações sem fins lucrativos. Também singular desse sistema é a disposição dos formuladores de políticas em consultar esses institutos (pela urgência da agenda, pela inexperiência, ou pela falta de conhecimento) e a frequência com que isso acontece.
Os think tanks fornecem muitas das ideias usadas pelos governos locais e federal em suas agências, programas e políticas; e contribuem para criar e disseminar essas formulações, com a privilegiada posição não apenas de interlocutores supostamente neutros desse sistema, mas também de gatekeepers das informações que podem circular nesse meio e de representantes dessas ideias que eles mesmos produzem e articulam. Em outras palavras, contribuem para a politização do conhecimento e, de certa forma, contribuem para o avanço da homogeneização de como esse conhecimento é produzido e disseminado. E, ainda que a “reputação” seja o mais importante “ativo” dos think tanks, independência, neutralidade, isenção e objetividade analíticas não devem ser dadas como certas, óbvias, ou naturais, ao contrário do que repete sua narrativa fundacional. Lastro, densidade e qualidade das análises tampouco.
Devido às suas relações próximas com autoridades e agências oficiais, também podem funcionar como indicadores da agenda oficial em diferentes áreas do governo, como Política Externa, assim como da agenda “paralela”, aquela que percorre canais menos convencionais e de menor exposição. Isso reforça a importância de se conhecer a fundo o Project 2025.
Tatiana Teixeira, Pesquisadora de pós-doutorado (INCT-INEU/CNPq) e editora-chefe, Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) e Andressa Mendes, Doutoranda em Relações Internacionais, Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas
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