Uruguaios contam como é a rotina de trabalho durante a pandemia

Diário Carioca

Apesar da pandemia do novo coronavírus, os profissionais de serviços essenciais, aquelas atividades que não podem parar, seguem suas rotinas de trabalho. No entanto, muita coisa mudou, a começar pelos cuidados que devem ter para evitar o contágio.

Profissionais de saúde, que trabalham na linha de frente do combate a covid-19, falam sobre medos, preocupações e cuidados não apenas com a saúde dos outros, mas com a própria.

A Agência Brasil conversou com profissionais uruguaios que continuam trabalhando e viram mudanças drásticas em sua rotina no último mês. O país registrou os primeiros casos da doença no dia 13 de março. No mesmo dia, declarou Estado de Emergência Sanitária.

Atualmente são 400 casos confirmados da doença e 5 mortes.

O governo uruguaio não decretou quarentena obrigatória a todos os cidadãos, mas determinou medidas de isolamento social para tentar conter a curva de propagação do novo coronavírus.

As aulas nas escolas de ensino fundamental e médio, por exemplo, foram suspensas a partir do dia 16 de março e não há, até o momento, definição de retorno. As cirurgias eletivas e consultas não urgentes também foram canceladas, num esforço de dar prioridade ao atendimento de pacientes com suspeita de infecção por covid-19. Restaurantes, bares e shoppings foram fechados, podendo funcionar apenas com serviços de entrega. Eventos com aglomeração de pessoas, como shows, cinemas, partidas de futebol e outros esportes, também foram suspensos.

Relatos

Martín Bazzino é um médico uruguaio de 49 anos. Ele conta que a mudança foi drástica em sua rotina de trabalho após a confirmação dos primeiros casos de covid-19 no país. Bazzino trabalha em policlínicas e com atendimento em domicílios.

No Uruguai, os planos de saúde prestam serviços diferentes do Brasil. De maneira geral, oferecem serviços de atendimento telefônico e consultas domiciliares 24 horas por dia, sete dias por semana. Bazzino é um desses médicos, que visita os pacientes e faz o primeiro atendimento ainda na casa da pessoa.

“O que mudou? Acho que tudo. Mudou o planejamento do trabalho, o volume de trabalho, que se multiplicou por três. Depois do coronavírus, suspenderam o trabalho das policlínicas, uma das medidas técnicas que achei muito acertadas para que todos os recursos humanos pudessem ser direcionados às ruas, às visitas em domicílios, como está recomendando o Ministério da Saúde Pública (MSP). Mudaram também as medidas de prevenção que nós temos que ter para atender às pessoas de maneira correta, personalizada, mantendo as medidas de proteção para eles e para nós, ou seja, para as famílias deles e para a nossa também. Temos que cuidar da pessoa que estamos indo assistir e também a nós mesmos, para não nos convertermos em um vetor de transmissão do vírus”.

Agência Brasil – Entre os médicos há um sentimento de medo do contágio?

Bazzino – Medo, não. Eu não tenho medo dessa doença. Tenho respeito, sobretudo. Nós, os médicos em particular, estamos na primeira linha de batalha, somos o pessoal que está no primeiro contato, principalmente os que vamos atender em domicílio. Temos que tentar fazer o paciente sentir-se o mais confortável possível, não podemos fazê-lo sentir como se estivesse padecendo de uma doença incurável. Não se pode viver a vida amendrontado por uma doença. Se sabemos que estamos na primeira linha de defesa, se sabemos que estamos em contato com pacientes potencialmente contaminados, não devemos nos expor.

Lamentavelmente esse tipo de pandemia faz com que o pessoal de saúde, e não estou falando somente dos médicos, estou falando de todo o pessoal de saúde, sejam os primeiros que terminam infectados. E geralmente o sistema entra em colapso, como ocorreu na Espanha, Itália e, neste momento, nos Estados Unidos, porque começam a ter os recursos humanos da área de saúde afetados. Então há um grande número de médicos doentes, infectados. Por isso que as medidas de proteção são tão importantes. Acho que o Uruguai vem aprendendo com o mau exemplo que deram outros países. Obviamente é muito cedo para cantar vitória nessa situação, ninguém está cantando vitória, mas acho que nosso sistema de saúde, nosso pessoal sanitário, rapidamente tomou consciência da realidade e está adotando as medidas necessárias além dos muros e dentro dos hospitais, para evitar os contágios em massa.

Agência Brasil – Como o senhor avalia a reação e as medidas tomadas pelo governo uruguaio?

Bazzino – Acho que o governo e o MSP, sim, fizeram muito bem as coisas. É como se uma granada estivesse explodido na cara do governo 24 horas depois de assumir (o novo governo assumiu a Presidência no dia 1º de março deste ano). O primeiro que fizeram foi formar uma grande mesa-redonda, um comitê de crise, e desenvolveram um programa nacional de luta contra a covid-19. Acho que, diferentemente de outros países, foram tomando medidas de toda índole – sociais, sanitárias, econômicas – para lutar contra essa pandemia e que foram acertadas. Estão mostrando uma tendência leve a um achatamento da curva, a um estancamento do crescimento e acho que isso é bastante positivo. Agora é o momento que se deve levar as medidas ao extremo, que devemos estar duplamente alerta. É o momento de pedir que a população redobre as medidas, o isolamento e a confiança que devem ter em nossas autoridades sanitárias e no nosso governo.

Agência Brasil – O senhor trabalha em contato com pacientes contaminados?

Bazzino – Tive vários pacientes confirmados com covid-19 nos últimos dias. Como faço? Igual o que faço com qualquer outro paciente. A gente tem de fazer com que ele se sinta acolhido, que nos preocupamos com ele, que entendemos a situação;  85% dos pacientes atravessam a doença em suas casas. Temos que fazer um acompanhamento bastante próximo, em domicílio, para prevenir as complicações que ele possa ter de forma precoce. De 10% a 15% dos casos vão requerer internação em um hospital e uns 5% são os quadros severos, que requerem internação em cuidados intensivos, com assistência respiratória mecânica.

Agência Brasil – A sua rotina de volta para casa mudou? Como é o ritual de limpeza para entrar em casa?

Bazzino – Quando chego em casa, o meu ritual dura entre 45 e 50 minutos. O que eu faço é muito simples. Chego e tiro os sapatos fora de casa – pus uma caixa especialmente para isso. Depois disso tiro toda a roupa, que vai diretamente para a lavadora, e vou direto para o banho. Um bom banho, desinfecção com álcool e depois com um sabão cirúrgico, para tentar tirar do meu corpo as últimas partículas que podem ter ficado do ponto de vista viral. Depois, sigo com a desinfecção ao máximo da minha casa. Nos fins de semana, recebo meus filhos em casa e tenho uma dupla responsabilidade nesse sentido, porque quero cuidar de quem mais amo. Tenho que extremar as medidas, estou meio histérico com esse tipo de coisas, mas neste momento não tem outros remédio do que tentar ser o mais metódico possível para cumprir com todas as medidas.

Auxiliar de limpeza

Alma Huart, uma uruguaia de 42 anos, trabalha como auxiliar de limpeza na Médica Uruguaya, uma corporação que conta com hospitais e policlínicas. Ela contou à Agência Brasil que, após a chegada do vírus, pediu para trabalhar em uma policlínica perto de casa, para evitar ter que pegar ônibus e também para estar menos exposta. Ela mora com o marido, duas filhas, uma enteada e três netas.

“Eu trabalho na limpeza da policlínica. Nós usamos toda a roupa de proteção de TNT (tecido não tecido), luvas e máscaras, e temos que ir ao vestuário para tomar banho após o trabalho. E fazemos muita lavagem de mãos com sabão e álcool em gel, várias vezes por dia. Em geral, para os pacientes isolados, nós fazemos (a limpeza do quarto) por último, porque depois já tomamos banho e vamos embora”, explica Alma.

Alma fiz ainda que as funcionárias da limpeza recebem mais de um uniforme e nunca podem sair na rua uniformizadas. O traje é para uso exclusivamente dentro das instalações hospitalares. Quando têm de trabalhar nas áreas onde estão os pacientes isolados, elas usam um uniforme específico, que logo em seguida já é posto para lavar. “A gente troca toda a roupa. Nos dão um uniforme para limpar essa área e depois colocamos outro uniforme”.

Alma conta que, ao chegar em casa, tira os sapatos, casaco, bolsa ou qualquer outro item que esteja carregando e separa. “A roupa que fica fora eu limpo com muito álcool e hipoclorito (desinfetante). Depois vou direto para o banho e lavo todos os dias a cabeça, o cabelo”.

Ela afirma que só vê a mãe, que tem 71 anos, de longe e diz que seus familiares não têm medo. “Não entendem a gravidade do corona”.

Cuidadora de idosos

A uruguaia Lourdes Francisco, 55 anos, é enfermeira e cuidadora de idosos. Ela diz que, após a chegada do novo coronavírus, perdeu a tranquilidade.

“Antes, eu ia tranquila para o trabalho, não tinha cuidado com o que tocava. Sempre foi assim e agora a realidade mudou. Tenho que ir de máscara e luvas, reforçar a higiene em todos os sentidos. Chego ao meu trabalho, jogo fora as luvas antes de entrar, tiro a máscara, que é de tecido, lavo, penduro, lavo as mãos. Se antes a lavagem das mãos durava dois segundos, agora leva 20. Não é que eu perca o sono e não durma mais, mas me preocupo em contaminar os outros. Cuido de um senhor idoso e meus pais também já são idosos. Suponho que se eu pego [a covid-19)], não tenho tanto perigo porque não tenho problemas respiratórios, só uma rinite alérgica. Mas passar para outra pessoa, para os meus filhos, os meus pais.Tenho uma filha que tem asma, isso também me preocupa, praticamente não a vejo mais. Antes nos víamos todos os dias. Perdi a tranquilidade”, afirma Lourdes.

A rotina de limpeza, ao chegar em casa, também mudou completamente. Lourdes conta que, antes do coronavírus, saía do trabalho, passava na casa da mãe para tomar um chimarrão, tomava um café sem pressa. Agora, quando vai visitar a mãe, que vive a 18 quadras de distância, vai caminhando para evitar de pegar ônibus, evitar aglomerações. No fim do dia de trabalho, “jogo as luvas fora na primeira lixeira após descer do ônibus. As chaves eu coloco num pote com água sanitária e água. A mão, com luva, que toquei no ônibus ao subir, não toco em nada até higienizar com álcool. Se toquei a carteira, tenho que limpar a carteira com álcool. Lavo minha bolsa todos os dias”.

“Chego em casa, tiro a roupa e já ponho para lavar, a máscara vai para a máquina lava-roupa também, vou para o banho, me desinfeto e visto uma roupa limpa. São coisas que mudaram e tenho agora muito mais trabalho, transtornou muitíssimo a minha vida”.

A cuidadora afirma que, nas ruas, há um clima de medo entre as pessoas. “Noto que as pessoas têm medo, é como se você tivesse uma doença. Tem pouca gente nas ruas, tanto no meu bairro quanto onde trabalho. Todos os dias parece que é domingo, está tudo fechado, quieto”.

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Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca