Na última semana, 54 economistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lançaram um manifesto com críticas ao governo federal e um programa contendo 10 políticas emergenciais para a crise sanitária. “Assistimos, neste início de 2020, a uma crise sem precedentes provocada pelo avanço da pandemia da covid-19. A necessidade de dar respostas rápidas e precisas para minimizar os efeitos sociais e econômicos desta crise é tarefa essencial e inarredável deste momento. A crise terá efeitos graves sobre vários aspectos do dia a dia da população”, afirma o manifesto.
Para analisar as propostas e discutir o posicionamento do governo brasileiro perante a crise, o Brasil de Fato MG entrevistou um dos autores do manifesto, o professor Frederico Jaime Jr., integrante do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), vinculado à Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Para o economista, a única possibilidade de fazer frente ao atual cenário passa pela forte intervenção do Estado, com um programa robusto de proteção à população, retomada dos investimentos e fortalecimento da saúde pública e da pesquisa.
Brasil de Fato MG: Em seus pronunciamentos, Bolsonaro propõe uma dicotomia entre a ameaça à saúde dos brasileiros pela pandemia e a ameaça da crise econômica que, segundo ele, seria causada pela política de isolamento da população e levaria ao aumento do desemprego e à fome. Como você vê essa relação entre a economia e a saúde pública neste momento?
Frederico Jaime Jr. – De fato, não há uma dicotomia entre saúde dos brasileiros e crise econômica. Essa pandemia tem impacto bastante significativo na atividade econômica por uma razão muito simples. A quarentena impõe o fechamento das atividades comerciais, o setor informal, que é muito grande na economia brasileira hoje, fica sem trabalho. Então, o impacto social de uma estratégia dessa natureza é, realmente, grande.
Como resolver isso? Fazendo o que Bolsonaro propõe, que é voltar às atividades normais, colocando em isolamento apenas idosos e pessoas em situação de maior risco? Os estudos da China, de outros países asiáticos e da Europa têm demonstrado que não é a melhor estratégia, pois esse vírus tem uma capacidade de proliferação muito grande e com um período grande de convalescença.
Ora, isto significa que, se as pessoas voltarem ao trabalho e um maior volume de pessoas se infectar, tiver maior necessidade de hospitalização e, eventualmente, de ir para o CTI, o sistema de saúde entra em colapso, ele não dá conta de receber ao mesmo tempo um número tão grande de pessoas. Isto só para o Coronavírus, imagine os outros problemas que existem e são capazes de encher os hospitais. Para dar um exemplo muito simples, a dengue.
Então, nesse caso, a regra número um é proteger a população, evitar que a população morra. Mesmo com os hospitais não tendo de receber um volume grande de infectados ao mesmo tempo, vamos ter um volume de mortes significativo. E quem está dizendo isso não sou eu, são os estudos que demonstram a oferta e demanda de leitos no país. O Cedeplar tem um estudo recente sobre leitos nos sistemas público e privado brasileiro e mostra que o sistema não é capaz de sustentar um volume muito grande de pessoas ao mesmo tempo.
Então, essa parada obviamente vai ter impactos econômicos, a recessão provavelmente virá e só há uma solução para resolver isso: o Estado atuar de forma rápida, eficiente e suficientemente grande para evitar um colapso social da população. Como? Na forma de transferência direta de renda, imediata e rapidamente. O Congresso aprovou um pacote de R$ 600, chegando a R$ 1200, o que, a meu juízo, é pouco (o governo Bolsonaro queria só R$ 200, depois passou para R$ 600).
Mas era para as pessoas começarem a receber amanhã. E, mais do que isso, os trabalhadores informais e os desempregados, todos, terem acesso a esse tipo de renda. Isto vai resolver o problema? Não, mas vai aliviar o impacto social. Isso só o Estado pode fazer, não tem alternativa.
Então, primeiro, preservar vidas significa seguir orientações científicas internacionais, ver o que está acontecendo na Espanha, Itália e Estados Unidos, para poder achatar a curva de gente utilizando hospital e, em consequência, diminuir a letalidade. E o governo, imediatamente, fazer transferência direta de renda, além de outras medidas que podem minorar o problema social, como mudar a política de pagamento de qualquer tipo de conta, criar mecanismos imediatos para minorar os efeitos sobre pequenos e médios empresários e assim por diante. De modo que, basicamente, a preocupação social é central. Não existe uma dicotomia, são faces da mesma moeda.
Nos últimos quatro anos, o Brasil fez uma série de reformas, como a trabalhista, a previdenciária, o teto dos gastos, privatizações e outras mudanças, que redimensionaram o papel do Estado na economia brasileira. A partir dessas reformas, o país ficou mais frágil para fazer frente a uma crise sanitária como a atual?
Todas as reformas que, de alguma maneira, transferem para o setor privado e diminuem o papel do setor público em áreas relevantes certamente têm um efeito amplificado sobre a situação econômica.
A reforma trabalhista não trouxe o aumento do nível de emprego como diziam que iria ocorrer e por uma razão muito simples: emprego aumenta se aumentar o nível de investimento. Se não houve aumento do investimento, seja ele público ou privado, não vai aumentar o emprego. O segundo ponto é que a reforma trabalhista facilitou o aumento da informalidade, o que tem um impacto muito grande sobre o mercado de trabalho, sobre a população. O trabalhador informal ganha menos, tem uma instabilidade maior e está mais sujeito a intempéries sanitárias.
O caso do teto de gastos tem efeito de prazo maior porque, até 2020, o teto de gastos ainda não chegou ao limite, conforme a proposta de emenda constitucional. O problema maior é que o Ministério da Economia criou outros dois mecanismos para conter os gastos. Particularmente, uma meta de déficit primário e também tem a regra de ouro, o Tesouro não pode gastar além daquilo que ele tem para investimentos, não pode se endividar para despesas correntes, como pagamentos de custeio da máquina pública.
Então, antes do Teto dos Gastos, já existem dois outros entraves que tiveram impacto significativo no gasto público. Ora, se você diminui o gasto público, seja em saúde, educação, Bolsa Família e outros programas sociais, isso obviamente vai ter um impacto maior sobre a necessidade de ir aos hospitais. As pessoas adoecem mais porque o nível de alimentação é menor, a instabilidade emocional é maior e assim vai uma série de outras razões que levam as pessoas mais pobres a terem maiores problemas de saúde.
Então, a relação entre essas reformas, com destaque para a reforma trabalhista e a política fiscal de curto prazo, é de um impacto bastante significativo sobre a crise sanitária. Já a reforma previdenciária, as privatizações e o Teto de Gastos têm efeito de médio e longo prazo.
A se manter a estrutura como se propõe, esta é uma crise sanitária de diversas outras que ainda virão.
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Como você avalia o que foi apresentado até agora pelo governo? Essas medidas são suficientes para enfrentar a crise econômica e proteger a população?
São absolutamente insuficientes, a começar pelo valor aprovado da nova transferência de renda, de R$ 600. Ele é insuficiente, baixo. Com o isolamento social, a quarentena, haverá um período longo de colapso do sistema de pequenas e médias empresas, que não vão conseguir vender. Então, é necessária uma política robusta, não só para transferir renda para as populações mais carentes e do setor informal e desempregados, mas também alívio para pequenas e médias empresas e, em alguns casos, até para empresas maiores, para evitar demissões.
A política de crédito, a forma como vão injetar crédito na economia também é muito insuficiente. Não adianta aliviar para o sistema bancário emprestar mais, se determinados setores não têm como tomar empréstimos. Então, é preciso aliviar dívidas de setores das pequenas e médias empresas.
Isso tudo tem impacto significativo no PIB. Os Estados Unidos, ultraliberais, onde a participação do Estado é menor do que em qualquer país europeu, vão gastar 10% do PIB com as políticas de minimização dos impactos econômicos e sociais da pandemia. Sendo os Estados Unidos o maior PIB do mundo, é ainda um volume insuficiente, mas grande.
No Brasil, o governo andou falando em alguma coisa perto de 2% do PIB. Então, é preciso fazer mais e é preciso ter claro que, ou bem o Estado atua de maneira significativa na atividade econômica ou o impacto social dessa pandemia será gigantesco.
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Você, juntamente com outros 53 professores da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, lançou um manifesto contendo 10 propostas que passam por investimentos públicos na saúde e pesquisa científica, medidas de proteção aos trabalhadores, abandono de metas fiscais e revisão do teto dos gastos, subsídio às pequenas e médias empresas, investimentos em infraestrutura, reconversão produtiva de amplos setores para a área de saúde, entre outras. Alguém com uma visão liberal talvez fizesse a seguinte objeção: como financiar um programa tão robusto sem agravar ainda mais o problema do déficit público? Como você responderia a essa visão?
A economia brasileira passa por uma situação de dois anos seguidos de uma recessão brutal com uma recuperação insuficiente para recuperar o nível do início de 2014. Entramos em uma recessão e não voltamos a crescer. Três anos com crescimento médio de 1%, depois de uma queda de quase 8%. O nível de desemprego aumentou drasticamente, combinado com o aumento do trabalho informal, ou seja, a precarização da mão de obra. Então, estamos em uma situação muito frágil.
Se antes da pandemia era fundamental a intervenção do Estado como contribuidor no aumento da demanda para minorar os efeitos da crise, agora, torna-se absolutamente essencial. Isto, inclusive, tem sido opinião de alguns liberais sérios, brasileiros ou do resto do mundo. Não há economista sério hoje que não considere fundamental uma atuação direta do governo para poder minorar os efeitos da pandemia.
E vou dizer mais: a atuação de curto prazo até o final do pico da pandemia não serão suficientes. As políticas de maior gasto público para sustentar uma demanda agregada cadente certamente vão necessitar de mais tempo. Então, uma proposta do governo de transferência de renda por três meses é absolutamente insuficiente. Não vai resolver, não vai aliviar o custo social desta situação dramática que estamos vivendo, inclusive porque vínhamos de uma situação muito complicada.
Agora, como financiar um programa tão robusto sem agravar o problema do déficit? Bom, obviamente, o déficit necessariamente aumenta nesse caso, por uma razão muito simples: os gastos vão aumentar, as receitas vão cair, pois, em uma economia estagnada, não há como as receitas aumentarem. O aumento do déficit público significará um aumento da dívida pública, não há alternativa.
Isso não é só no Brasil, em todo o mundo os governos terão problemas com o aumento da dívida pública. Ora, se esse aumento possibilitar crescimento econômico, esse crescimento econômico vai gerar aumento subsequente das receitas tributárias e aumento do PIB, fazendo com que a relação dívida/PIB, no futuro, possa não ser tão grande quanto no presente.
Então, veja bem, aumentar dívida pública para solucionar baixa demanda agregada, baixo investimento, nível alto de desemprego, não é problema porque, no futuro, isso pode significar aumento do PIB, diminuição do desemprego e aumento da arrecadação. Isto é mais ou menos o que o [economista John Maynard] Keynes propôs quando ele escreveu, no final dos anos 30, a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Mas o ex-presidente Franklin Delano Roosevelt já tinha implementado uma política desse tipo para sair da Grande Crise de 29. O Estado existe é para isso mesmo.
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Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Elis Almeida