Incubadora (substantivo feminino): aparelho que mantém condições favoráveis ao crescimento e ao desenvolvimento.
Menina de 10 anos precisa ser levada para outro estado para acessar o direito ao aborto legal, após ter sido estuprada pelo tio e é recebida aos gritos de “assassina”.
Mulher de 33 anos acorda da anestesia após curetagem. Tendo sofrido aborto espontâneo que colocou sua vida em risco, fica sabendo, neste momento, que o feto tinha 470gr. Se tivesse 500gr, seria feito um Boletim de Ocorrência e ela teria que depor sobre o que levou o feto a morte, podendo ser investigada por isso.
Mulher de 36 anos, em situação de rua, é submetida a laqueadura contra sua vontade, por ordem judicial.
O que há em comum nestes três casos, aparentemente tão distintos?
Vamos ao óbvio: em todos eles estão envolvidas pessoas socializadas como mulheres, o que implica estarem condicionadas pela maternidade compulsória.
Vamos mais fundo: justificativas distintas – mas tendo mesma base – nenhum deles coloca os sentimentos, os desejos e riscos para suas vidas em primeiro plano.
Cheguemos ao centro: em todos, o Estado se faz presente para reafirmar a condição de matrizes reprodutoras. Sim, inclusive no último caso, já que a laqueadura foi realizada sob a justificativa de que aquela mulher era dependente química – e pobre – por isso inapta a decidir sobre sua capacidade reprodutiva.
Há ainda um núcleo a ser reconhecido: todas são mulheres de origem popular, cuja maternidade é apropriada na forma de reprodução de “mão de obra” barata. Este é o papel destinado pelo Estado e a ordem patriarcal para as mulheres da classe trabalhadora.
Para que esta finalidade seja atingida, toda gravidez precisa ser “glorificada”, ocorra ela sobre qualquer condição. Precisa ser representada como um estado de pureza, o ápice na vida das mulheres.
As complexas formas de domínio sobre nossos direitos encontram-se sintetizadas em iniciativas “legais”, como o Projeto de Lei (PL) 5435 que, intitulado de Estatuto da Gestante, traz enormes ameaças às nossas vidas.
No Artigo 1°, o PL já diz a que veio, ao afirmar que “esta lei dispõe sobre a proteção e direitos da Gestante, pondo a salvo a vida da criança por nascer desde a concepção”.
Em uma reedição disfarçada do Estatuto do Nascituro, o projeto prevê uma definição do que é “vida humana”, vinculando sua origem ao momento da fecundação.
Essa “vida” recém originada, é posta acima da vida da mulher que, assim, estaria obrigada a levar adiante a gestação, mesmo quando decorrida de estupro. Mesmo em caso de feto anencéfalo, ou de risco de morte para a mulher o feto ganharia, segundo este PL, prioridade em detrimento da vida da mulher gestante.
A aprovação de uma legislação desta ordem nos faria recuar a uma situação semelhante a que vivíamos antes do Código Penal (de 1940), já que este passou a garantir direito ao aborto legal para os casos de estupro e risco à vida da mulher.
É necessário ressaltar a violência prevista no artigo 11 do PL 5435, ao prever o que temos chamado de “Bolsa Estupro”. A proposta indigna em todos os sentidos possíveis, nesta sociedade profundamente conservadora, e gera uma pressão absurda sobre nós.
No Brasil (dados do SUS), em 2018, 21 mil crianças tiveram filhos. Como sabemos, toda gestação de meninas de 14 anos ou menos é resultado de estupro. Este projeto de lei prevê que o SUS seja o informante destes casos de gestação mediante estupro, a fim de que eles sejam “abrigados” sob a lei.
Se aprovado, o PL da Bolsa Estupro significará a última fronteira do domínio do Estado sobre nossos corpos e a autorização explícita ao estupro. O estuprador poderá figurar como progenitor na Certidão de Nascimento e ter direito a guarda da criança fruto da violência.
É neste ponto que nossas vidas se encontram com as das mulheres nas cenas apresentadas no início do artigo: como mulheres, passamos a ser entendidas somente como úteros capazes de carregar fetos, sem mais direitos, como um território ocupado para ser colonizado.
Clarisse Chiapinni – 8M/GIM
Denise Laitano – Col. Feminista Outras Amélias/Mulheres de Resistência e Luta
Maíra Freitas – 8M/GIM
Márcia Martins – Conselho Municipal dos Direitos da Mulheres
Zadi Zaro – Col. Feminista Outras Amélias/Mulheres de Resistência e Luta
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko