Passados 100 dias de governo Lula, ainda não foi apresentado ao país um programa de políticas públicas ou iniciativas de leis para o enfrentamento do grave problema da corrupção sistêmica brasileira. A ausência de um plano geral de ações reflete o que se viu — ou melhor, o que não se viu — durante a campanha, em que o tema foi tratado apenas olhando para o passado.
Outros aspectos negativos marcaram este período inicial da administração Lula III, com destaque para a nomeação — e manutenção no governo — de ministros investigados, acusados e até condenados por corrupção. Também marcaram negativamente o início desta gestão as tentativas de enfraquecimento da Lei das Estatais e as pressões sobre a Diretoria de Governança e Conformidade da Petrobras. Principal empresa do país, com dezenas de milhares de fornecedores, o padrão de integridade da Petrobras é um farol para o mercado brasileiro e retrocessos ali produzem efeito sistêmico. O Orçamento Secreto, criticado pelo presidente Lula durante a campanha, mudou de formato e verbas bilionárias ainda serão distribuídas para uso eleitoreiro de parlamentares aliados, mantendo práticas do governo anterior que fizeram explodir a corrupção em nível local. Na estatal Codevasf, braço executor de bilhões de Reais canalizados pelas emendas de relator e cenário de inúmeros escândalos de corrupção, foi mantida a diretoria indicada pelo Centrão.
Apesar destes fatos graves, houve também medidas positivas para a pauta anticorrupção nestes primeiros 100 dias. O novo governo nomeou técnicos respeitados a cargos estratégicos para o enfrentamento da corrupção e vem adotando ações afirmativas inéditas para promoção da diversidade na máquina pública, o que ataca uma forma perversa e arraigada de corrupção institucional. A CGU também teve papel de destaque ao revogar sigilos ilegais do governo anterior e, ainda mais importante, estabeleceu diretrizes para a interpretação da Lei de Acesso à Informação, que devem reduzir o espaço para sigilos abusivos. Na área ambiental, depois de quatro anos de retrocessos, está em curso um processo fundamental de resgate das políticas e órgãos de fiscalização ambiental.
Espaços de participação social estão sendo reestabelecidos e o diálogo com a sociedade civil organizada volta a acontecer na formulação e monitoramento de políticas públicas. De forma geral, as credenciais mais democráticas do atual governo se fazem notar em áreas diversas, o que é condição primordial para qualquer avanço sustentável do enfrentamento à corrupção.
Há sinais importantes de alerta para o futuro próximo. A possibilidade de indicação do advogado pessoal do presidente ao STF contraria compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil para a garantia da independência do Poder Judiciário, além de compromissos com a sociedade brasileira para a promoção da diversidade nos espaços de poder. Neste ano também terminará o segundo mandato do procurador-geral Augusto Aras e, com ele, a mais funesta e desonrosa gestão da Procuradoria-Geral da República desde a redemocratização, com o desmonte do enfrentamento à macrocorrupção e omissões graves frente a violações legais sistemáticas do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, incluindo a gestão criminosa da pandemia da Covid-19 e a área ambiental. Declarações do presidente Lula de que não respeitará mais a lista tríplice na nomeação para a PGR trazem grande preocupação de que o padrão bolsonarista de neutralização deste órgão primordial ainda pode vigorar.
O marco de 100 dias de administração é uma oportunidade para o governo e a sociedade brasileira reforçarem a compreensão de que a luta contra a corrupção é fundamental para o desenvolvimento sustentável e socialmente justo, além de essencial para os esforços de resgate democrático.
Pontos positivos
- Nomeações de pessoas técnicas para postos-chave no enfrentamento à corrupção e na promoção da transparência, como a Controladoria-Geral da União (CGU), o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) e a Diretoria de Investigação e de Combate ao Crime Organizado e à Corrupção da Polícia Federal;
- Ações afirmativas de diversidade, incluindo nomeações para cargos-chave da administração federal, com potencial impacto na corrupção institucional;
- Revisão de sigilos impostos abusivamente pela administração de Jair Bolsonaro e publicação dos enunciados que orientam interpretações da Lei de Acesso à Informação, garantindo maior segurança jurídica a este direito;
- Medida Provisória que reestabelece o voto de qualidade no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais);
- Atuação na crise dos Yanomamis, alvo dos impactos do garimpo ilegal, com indicações de nomes técnicos para órgãos como o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama e a Funai;
- Estabelecimento, pela Receita Federal, da Nota Fiscal Eletrônica do Ouro Ativo Financeiro, o que permitirá maior controle de fraudes na cadeia do ouro;
- Reestabelecimento do diálogo com a sociedade civil e de espaços institucionalizados de participação na formulação e monitoramento das políticas públicas
- Proposta de regulamentação do uso do cartão corporativo colocada para consulta pública (ainda não implementada).
Pontos negativos
- Manutenção de órgãos como a Codevasf e o Dnocs, cruciais para políticas sociais e esforços brasileiros de mitigação da mudança climática, sob influência do Centrão, apesar de repetidas evidências de desvios e mau uso dos recursos públicos apontadas pela imprensa e pelo TCU;
- Frente à decisão do STF que proibiu o esquema do Orçamento Secreto e da necessidade de ampliar a base de apoio no Congresso Nacional, o governo canalizou a distribuição de metade do valor das emendas de relator (RP9) para um novo mecanismo de distribuição política de recursos que saem diretamente dos ministérios para indicações políticas, mantendo os riscos elevados de corrupção;
- Defesa da mudança na Lei das Estatais, em ação que tramita no STF, para reduzir a quarentena exigida para que ministros de Estado e pessoas que tenham integrado campanhas políticas ou a estrutura de partidos assumam o comando de empresas estatais;
- Pressões para enfraquecer a Diretoria de Governança e Conformidade da Petrobras, instituída após revelação dos esquemas de macrocorrupção na companhia;
- Manutenção, no governo, de ministros alvo de investigação pelo mau uso de recursos públicos, condenação por peculato e com evidências de relações com a milícia.
Pontos de atenção
- Sinalização de que o governo não indicará o próximo Procurador-Geral da República entre os nomes da lista tríplice da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), rompendo com uma tradição dos governos anteriores do PT;
- Sugestões de que o governo considera indicar, para a próxima vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF), um advogado com vínculos pessoais com o presidente da República, contrariando recomendações internacionais de independência do Judiciário e contra a necessidade de se ampliar a diversidade nas instituições;
- Sinalização de que o governo está discutindo modelos de substituição do pagamento das penalidades devidas por empreiteiras que cometeram atos de corrupção pela realização de obras, o que anula o efeito dissuasório das penas e amplia os riscos de reiteração criminosa;
- Apresentação, por partidos da base do governo, de uma ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) junto ao STF para suspender multas de acordos de leniência estabelecidos pela Lava Jato.
Recomendações
- Resgatar a independência da Procuradoria-Geral da República, respeitando a lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) para a indicação do(a) próximo(a) titular;
- Realizar indicações de magistrados, principalmente para os tribunais superiores, que promovam independência, integridade e diversidade no Poder Judiciário;
- Promover a transparência fiscal e estabelecer mecanismos robustos de integridade sobre a execução do orçamento público, sobretudo a parcela do orçamento (R$ 19,4 bilhões) que estava destinada às emendas do relator e agora será destinada às emendas individuais e ao orçamento de ministérios;
- Fortalecer e garantir efetividade aos sistemas de integridade de órgãos públicos estratégicos e empresas estatais, principalmente aqueles que foram entregues ao bloco do “Centrão” e alvo de denúncias em série, como a Codevasf e o Dnocs;
- Afastar do governo indivíduos investigados ou condenados por corrupção;
- Resgatar, através de reformas e recomposição, a independência, integridade e efetividade da Comissão de Ética Pública;
- Preservar a capacidade dissuasória das penalidades aplicadas pela Lei Anticorrupção (12.846/2013). Qualquer aprimoramento na aplicação desta legislação deve passar por debate público participativo e qualificado, seguindo as melhores práticas interacionais e os compromissos assumidos pelo país nos foros multilaterais (e.g. artigos 3 e 5 da Convenção contra o Suborno Transnacional da OCDE);
- Estabelecer mecanismos rígidos de transparência e controle democrático na aquisição e uso de ferramentas de vigilância por órgãos estatais;
- Reforçar o combate aos crimes ambientais, integrando uma abordagem anticorrupção e antilavagem, para reduzir os riscos de fraude, corrupção e lavagem que viabilizam o garimpo ilegal, a exploração ilegal de madeira, o desmatamento ilegal e a grilagem de terras públicas;
- Submeter o Acordo de Escazú ao Congresso Nacional para que seja ratificado e implementado no Brasil e use as disposições do acordo relacionadas ao acesso à informação ambiental, participação e justiça, bem como à proteção dos defensores ambientais como guia para consolidar o Estado de direito ambiental no Brasil;
- Incorporar salvaguardas e instrumentos de promoção da transparência e integridade pública e privada em termos aditivos ao Acordo de Associação Birregional Mercosul-União Europeia;
- Resgatar a liderança do Brasil em foros internacionais como o Grupo de Trabalho da Convenção contra o Suborno Transnacional da OCDE, a Conferência dos Estados Partes da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (CoSP-UNCAC), a Convenção Interamericana contra a Corrupção e o Mecanismo de Acompanhamento de sua implementação (MESICIC), a Parceria para o Governo Aberto (OGP) e a Convenção Internacional contra a Corrupção (IACC).