Um novo sintoma do atual estágio do capitalismo estadunidense pode ser visto no caso da empresária Elizabeth Holmes, uma das promessas do Vale do Silício, mas que está sendo julgada pela corte americana por 12 acusações de fraude.
Antes de estampar as páginas criminais, Holmes foi figurinha carimbada em noticiários mais nobres. A revista Inc, por exemplo, colocou Holmes em sua capa com os dizeres “o próximo Steve Jobs”, fazendo referência à criatividade do falecido fundador da Apple.
A Forbes também deu esse destaque à empresária, que foi a capa da edição Forbes 400, em que lista alguns dos novos magnatas do cenário mundial.
Com 37 anos, a empresária voltou a ser notícia pelo julgamento de sua conduta à frente da sua empresa Theranos, uma startup que revolucionaria a medicina mundial.
Avaliada em 9 bilhões de dólares (cerca de 47 bilhões de dólares), a companhia trabalhava no exame Edison, que permitiria a cientistas identificar doenças como câncer ou diabetes com apenas algumas gotinhas de sangue.
Rápida e indolor, uma vez que dispensaria o uso das agulhas tradicionais, a tecnologia proposta pela Theranos atraiu a atenção de gente grande. Rupert Murdoch, magnata do ramo midiático, por exemplo, investiu mais de 120 milhões de dólares (630 milhões de reais) na iniciativa fraudulenta.
A família Walton, dona da rede varejista Walmart, e a ex-secretária da educação Betsy DeVos também caíram no golpe, junto com uma horda de investidores e fãs do Vale do Silício.
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Enquanto discursava para convertidos em frente às câmeras, nos bastidores a tecnologia da Theranos era pura cortina de fumaça. A trama teve uma reviravolta em apenas alguns meses – em 2014 ela estava no céu, e em 2015 conheceu o inferno, quando começaram as primeiras acusações de fraude. Em 2018, a Theranos colapsou por completo.
À justiça americana, Holmes e seus advogados tentam argumentar que fracasso e fraude são coisas distintas, e que o primeiro não configura crime.
Enquanto os juristas não batem o martelo, a sociedade já tem seu veredicto: a empresária é culpada de fazer sangrar milhões de dólares de “pobres” investidores.
“É claro que todos estávamos ao lado dela durante sua ascensão”, diz o Professor Emérito de Psicologia da Knox College, Tim Kasser, ao Brasil de Fato.
E completa: “A ideia era apoiá-la para que mais pessoas seguissem seu exemplo, mas ela foi longe demais e agora precisamos puni-la. A gente consegue tolerar o Jeff Bezos faturando bilhões enquanto os funcionários da Amazon mal podem ir ao banheiro e recebem salários mínimos. Podemos tolerar CEOs ganhando 200 vezes mais que a média dos trabalhadores de suas empresas. Podemos até tolerar líderes que sejam pouco ecológicos. Aceitamos tudo no capitalismo, menos que nos façam perder dinheiro – aí, sim, cabe julgamento e condenação”.
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Para Kasser, essa armadilha do sistema não é nova e nem exclusiva aos Estados Unidos. Todos os países que operam sob a lógica do capital fazem da busca ao lucro sua premissa de existência.
Isso não significa, contudo, que seja algo saudável ou até desejável. “Tenho estudado valores materialistas há 30 anos, e é sabido que sociedades que se baseiam em valores materiais são menos felizes, têm menor qualidade de vida, e são menos gentis. As características mais marcantes passam a ser a competição e manipulação”
E continua, “nações mais materialistas têm menos filhos, e as crianças que ali existem têm níveis menores de bem-estar, segundo a UNICEF. Então tanto do ponto de vista individual, quanto do coletivo, o capitalismo é sempre danoso”.
Raízes coloniais
Em conversa com a reportagem do Brasil de Fato, o economista Richard Wolff explica que o capitalismo estadunidense é um produto de uma sequência de eventos, cujas raízes estão fincadas na própria colonização.
“Os Estados Unidos passaram por um processo de colonização definitiva, em que os nativos foram aniquilados ou expulsos, e substituídos por trabalhadores que não puderam ser bem-sucedidos em suas terras originais. Paralelamente, a colonização aconteceu sob um regime protestante não-católico, então não havia as contenções papais. Impôs-se um capitalismo sem limites”, diz.
A falta de freios se fez mais notável anos depois, quando o país saía da escravidão, em 1860. “Nessa época experimentamos um crescimento inédito, e o jogo entre Estados Unidos e Inglaterra virou, com os americanos se tornando mais poderosos e abraçando a ideia de que essa terra foi escolhida por Deus para liderar a humanidade”, afirma.
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O economista, que também é professor emérito da Universidade de Massachusetts, revela que o apogeu do capitalismo estadunidense aconteceu nos anos 1950, 60, 70 e 80, com a ideia – e a promessa – de que tudo seria melhor do que antes.
“Assim nos casamos com a promessa de que, ao lado de nossos parceiros, teríamos uma vida melhor que a dos nossos pais. Criamos nossos filhos achando que a vida deles será melhor que a nossa, e que eles apenas precisam ir para a faculdade para conseguir uma casa maior, férias melhores ou o que quiserem. O problema é que essa lógica acabou”.
Em retrospectiva, Wolff argumenta que o grande erro da classe trabalhadora foi ter lutado por seus direitos e não ter colocado um ponto final no capitalismo. “Depois da Grande Depressão, lá nos anos 1930, houve o boom dos sindicatos e as conquistas de direitos como seguro desemprego, aposentadoria e outros”, mas pondera que “a classe trabalhadora acordou, ficou maravilhada com suas conquistas, e esqueceu de controlar o capitalismo, que depois viria para lhe tirar todos os direitos previamente conquistados”.
As promessas do capitalismo nos EUA, segundo Wolff, começaram a minguar já em 1980 e 1990, mas se manteve viva com a ajuda de “aparelhos”. “Os americanos passaram a contrair dívidas para financiar a casa, o carro, a educação e até a saúde. Neste momento, os americanos estão sem trabalho e sem futuro. Os Estados Unidos são um grande fracasso”, pontua.
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De fato, a dívida de consumo no país passou dos 14 trilhões de dólares (73 trilhões de reais) no último trimestre de 2020, segundo o Banco Central de Nova York. A instituição mapeou uma alta em quatro principais áreas de débitos: moradia, automóveis, créditos estudantis e cartões de crédito.
Embora alguns economistas acreditem que essa dívida não seja um grande problema para a macroeconomia, eles ignoram o efeito dominó dessa questão. “Estamos tão desesperados que queremos acreditar em qualquer um que apareça na televisão com promessas de salvação. Por isso Donald Trump foi eleito. Não porque os americanos aprovem sua política, mas porque eles estão desesperados e querem acreditar em um candidato que diz ser capaz de fazer os Estados Unidos grande de novo”.
Apesar de o PIB americano ter avançado 6,6% no segundo trimestre de 2021, a desigualdade local mostra, mais uma vez, as fraturas do sistema. Segundo o Pew Research Center, os EUA têm a maior desigualdade de renda de todos os países do G7, e o abismo que separa ricos e pobres mais do que dobrou de tamanho entre 1989 e 2016.
Edição: Arturo Hartmann