De 18 à 23 de abril acontece em Limoeiro do Norte a 11º Edição da Semana Zé Maria do Tomé. Mas quem foi Zé Maria do Tomé? Qual foi o legado que ele deixou na luta contra o uso de agrotóxicos e contra a pulverização aérea? Para falar sobre todas essas informações, o Brasil de Fato conversou com Reginaldo Ferreira de Araújo, Historiador e Ativista do Movimento 21 (M21). Confira:
Brasil de Fato – Você pode nos contar um pouco sobre a trajetória de Zé Maria do Tomé?
O Zé Maria do Tomé foi um agricultor e ativista ambiental aqui da Chapada do Apodi, de Limoeiro do Norte. Ele lutava contra a pulverização aérea e contra a grilagem de terra aqui na região. Sabemos que o berço do agronegócio no Ceará é na Chapada do Apodi, que faz divisa com o Rio Grande do Norte. O Zé Maria era um camarada que percebia a modificação da nossa região a partir da grilagem da terra, da expansão das fazendas de fruticultura e da questão do envenenamento com o uso dos agrotóxicos. Essa percepção do Zé Maria surgiu inclusive de forma trágica com a sua família, sua filha teve um problema de pele por conta dos venenos, os animais que ele criava, morreram e a água da comunidade foi contaminada, porque o avião baixava e pulverizava as plantações, mas também os canais que levavam água até as comunidades rurais.
Então, ele começou a articular um grande movimento contra a pulverização aérea e por conta disso pagou com a vida, ceifada no dia vinte e um de abril de 2010.
Brasil de Fato – E qual foi o legado que ele deixou na luta contra o uso de agrotóxicos e contra a pulverização aérea?
O legado do Zé Maria é muito importante porque com toda força popular, ele conseguiu em 2009 articular as comunidades e movimentos sociais daqui de baixo da Chapada. Por ser da chapada ele catalisava essas lutas e conseguia inserir as pessoas da comunidade. Essa mobilização conseguiu que uma lei fosse sancionada em Limoeiro por seis meses, sendo a época, a única cidade do Brasil e do mundo a ter uma lei específica contra a pulverização aérea.
Ela foi aprovada por unanimidade na Câmara Municipal e sancionada pelo prefeito da época em 2009. Entretanto, seis meses depois, no dia 21 de abril, Zé Maria foi assassinado e a lei revogada pelos mesmos vereadores que a aprovaram. Então, a luta e o legado de Zé Maria se deram a partir do assassinato, do silêncio da voz de Zé Maria, mas que motivou outros movimentos, outras organizações a encampar até hoje seus ideais.
Brasil de Fato – Em relação aos movimentos que deram continuidade a luta do Zé Maria do Tomé, um desses é o M21 na qual você faz parte. Você pode explicar o que é o M21?
A escolha do nome tem alusão a data do assassinato de Zé Maria do Tomé, dia vinte e um de 2010, e por isso recebeu o nome de movimento 21, ou M21. Em relação aos outros movimentos, já existiam, porém, eram isolados. A partir do assassinato do Zé Maria percebemos que os vinte e cinco tiros dados pelas costas foram um recado para vinte e cinco pessoas, vinte e cinco instituições e não podíamos mais ficar calados. Nesse sentido, nós agregamos todos esses movimentos que é o MST, a Cáritas Diocesana, o Tramas UFC, a UECE, parceria com a Fiocruz, com a escola agrícola, com o Cerest. São várias instituições e organizações que a cada dia vem se aproximando e mantendo essa luta, e apesar do assassinato de Zé Maria do Tomé e a derrubada da lei aqui em Limoeiro, o tema hoje está em nível nacional, então partimos de uma luta local para uma luta nacional e internacional.
Brasil de Fato – Em 2019 entrou em vigor a Lei Zé Maria do Tomé que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos no estado do Ceará. Essa Lei já trouxe alguma mudança na vida das famílias que sofriam com esse tipo de ação? Como está a aplicação da Lei?
A Lei foi extremamente importante para quem tomava banho de veneno, as pessoas que vivem nos territórios onde havia pulverização aérea. Existem localidades que já estão há dois anos sem tomar banho de veneno, e isso é uma conquista, um fato real. A Lei foi aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e sancionada pelo governador Camilo Santana (PT). Porém, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que faz a proteção do agronegócio, tem tentado derrubar essa Lei no Supremo Tribunal Federal. Já conta com dois votos favoráveis, o da Cármen Lúcia e do Edson Fachin, e um pedido de vista feito pelo Gilmar Mendes.
Nossa luta hoje é para que a Lei se mantenha de pé, porque é o único estado do país e único país da América Latina a contar com essa lei. A nossa luta é para que a votação siga para o Plenário de forma presencial e não virtual, assim o país todo pode acompanhar esse debate e fortalecer essa luta que é um debate para além do Ceará. O que era uma lei específica de Limoeiro do Norte e durou apenas seis meses, se tornou estadual, e agora pode se tornar nacional e até latino-americana.
Brasil de Fato – Já existe uma data fechada para isso acontecer, ou ainda não?
Não. Estamos vivenciando essa semana a pauta do desmatamento na Amazônia e acredito que somente depois deva entrar essa pauta. O país está em constante retrocesso ambiental, só nesses três anos de governo Bolsonaro, vários tipos de agrotóxicos foram liberados, inclusive agrotóxicos proibidos em outros países. Então, o que vai ser de nossas gerações do futuro, dos nossos filhos e netos, não vão ver uma sociedade limpa como era a nossa infância. Devemos insistir, na luta para manter essa lei que é importantíssima para que não ocorra o que aconteceu aqui no Vale do Jaguaribe em outras cidades, estados ou outros países que ainda mantém a natureza saudável.
Brasil de Fato – Você falou um pouco da realidade da chuva do veneno, como era a realidade das famílias que moravam na Chapada do Apodi e tinham que conviver com a pulverização aérea de agrotóxicos?
Olha, era muito ruim.
Os trabalhadores quando desciam da Chapada, às vezes coincidia do avião passar na mesma hora e banhava todo mundo de veneno, e eles tinham que voltar para casa, trocar de roupa e retomar o caminho do trabalho. Nunca houve um calendário de aviso para as comunidades que margeiam as fazendas em relação ao dia e horário da pulverização, e isso acabava desrespeitando todos os moradores, eles modificaram totalmente o nosso território.
As pessoas perdiam suas criações caseiras, as roupas que botavam no varal ficavam encharcadas de veneno, então era muito desrespeitoso com toda a população local. Hoje, aqui na nossa região, não temos mais a pulverização aérea, mas, ainda existe a pulverização braçal, com spray, com utilização do trator. Não ficamos livres totalmente da contaminação por agrotóxicos, e continuamos lutando por um território livre do veneno, mas infelizmente o processo para uma transição agroecológica ainda não se tornou real. Mas permanecemos nessa luta, como diz Eduardo Galeano “a justiça é como serpente, só morde os pés descalços”.
O acampamento Zé Maria do Tomé [ocupação realizada pelo Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) em terras da União que ficam na Chapada do Apodi que produz frutas e hortaliças sem a utilização de agrotóxicos] é um exemplo da nossa resistência. Já está na sua sexta decisão de reintegração de posse, mas o Ministro Barroso [do STF] proibiu os despejos até o final do ano passado por conta da pandemia, em seguida acrescentou três meses, que seria até em março, agora concedeu mais dois meses, e se estende até o mês de junho. Mesmo assim, a gente fica com essa angústia e as pessoas não aguentam mais. É um acampamento que foi ocupado desde o dia cinco de maio de 2014, já tem oito anos, e agora a gente tá vivenciando mais um momento de angústia com esse prazo.
Brasil de Fato – Então essa questão da reintegração tem um prazo de até junho?
Isso. A primeira decisão foi até o final de dezembro do ano passado, que em seguida foi estendido até março desse ano, e no final de março o prazo foi estendido novamente até o final do mês de junho. Essa disputa é sobretudo porque não temos como contar com as instâncias da Justiça, a gente perdeu na esfera local, na quinta vara em Recife, e perdemos também no Supremo. O que tem mantido as famílias em seus assentamentos e acampamentos pelo país é a Campanha Despejo Zero, idealizada durante a pandemia. No caso do Acampamento Zé Maria, no Ceará não possui nenhum outro local que comporte essas famílias, Tabuleiro não comporta, Quixeré e Russas não comportam.
Brasil de Fato – Você falou algo muito impactante que é a questão da chuva do veneno, quando você fala “chuva do veneno”, realmente era chuva?
Sim. Aqui em Limoeiro do Norte cerca de 38% da população já desenvolveu algum tipo de câncer, crianças que nasceram sem braço, sem perna, com problemas de puberdade precoce. O que o Zé Maria anunciava empiricamente, as pesquisas confirmaram, desde sempre ele teve um olhar observador.
Infelizmente, só começaram a ligar para as observações do Zé maria quando começou a morrer gente grande, quando a doença chegou na elite da região foi que a coisa se tornou séria. É por isso que devemos permanecer na luta pela aprovação da Lei em todo o território nacional, porque será uma conquista de todos nós.
Brasil de Fato – Por falar em luta, de 18 à 23 de abril acontece a 11º Semana Zé Maria do Tomé. O que é esse evento e quais as expectativas para esse ano?
É uma conjunção de todas as lutas do ano. Nós temos a Igreja atuante, que é uma Igreja progressista que vem do povo e trabalha há onze anos na construção das atividades da Semana Zé Maria do Tomé. No primeiro ano que assassinaram o Zé Maria, a gente fazia uma atividade por semana para resgatar o seu legado, mas aí começamos fazer por ano e todo ano.
Sobre a programação, no dia 18 temos a abertura, no dia 19, pela manhã, vamos ter um debate sobre a produção das mulheres, que possuam uma força grande aqui na nossa região, tanto na produção de experiências de agricultura saudável, como na produção de artesanato. À noite vamos ter o debate sobre a resistência dos territórios que o agronegócio não tinha invadido ainda, mas que durante a pandemia fizeram um desastre com uso do correntão. Na quarta-feira (20), passaremos nas escolas locais, para debater a importância dessa luta. Na quinta-feira (21), dia do assassinato de Zé Maria do Tomé vamos realizar a Romaria dos Mártires, que parte do local em que Zé Maria foi assassinado, até a igreja da comunidade do Tomé. Nós convidamos todo mundo a acompanhar a Romaria que não aconteceu nós últimos dois anos de pandemia e agora vamos retomar de forma presencial, com máscara, álcool em gel, água individual e toda uma estrutura de segurança montada para isso.
Na sexta-feira (22), iremos até a imprensa que sempre sai em defesa do agronegócio, e faz propagandas sobre o agro é pop, e nós queremos dizer que o agro não é pop, o agro é morte, e quem morre é somente o trabalhador que vive no campo. Então nós vamos disputar a consciência na imprensa na sexta-feira. No sábado (23), será realizado o encerramento da semana com nossa feira, a partir das seis horas da manhã, em frente ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Limoeiro do Norte, anunciando a nossa produção saudável sem agrotóxico, junto às comunidades, hospitais e outros parceiros que contribuem para a produção saudável de alimento. Todo mundo está convidado e pode participar.
Brasil de Fato – Então todo mundo pode participar da Semana Zé Maria do Tomé?
Todo mundo participar, na programação vamos ter momentos híbridos e totalmente virtuais, então você pode estar no Chile, pode estar no Paraguai, no Uruguai, no Brasil, em Salvador, que você pode acompanhar. Os únicos momentos que serão presenciais é a romaria, a feira e a ida nas escolas para diálogo com os estudantes. Já as atividades de auditório serão todas virtuais.
Brasil de Fato – As pessoas precisam se inscrever para participar desses eventos, onde elas podem pegar mais informações?
Nós temos as páginas oficiais do movimento no YouTube, Twitter, Facebook e no Instagram. E as pessoas podem se inscrever porque para nós é muito forte. Eu tenho que saber como chegou, quem é, para a gente trocar essas conversas fazer esse intercâmbio.
Brasil de Fato – Reginaldo, chegamos ao final de nossa entrevista e gostaria de saber se você quer deixar alguma mensagem aos nossos leitores?
Nós estamos travando uma guerra muito perversa e muito grande contra esse sistema capitalista, contra esse modelo de negócio que é o agronegócio. Agora na pandemia, o Brasil retornou ao mapa da fome, enquanto o agronegócio só cresce e produz cada vez mais alimentos. Aqui em nossa região, quem distribuiu alimento foi o acampamento Zé Maria de Tomé, entregamos cestas básicas nos Hospitais de Limoeiro, Tabuleiro, Quixeré e nas periferias dessas cidades. Então continuaremos nessa luta, contra o capitalismo, contra o agronegócio, a pulverização de veneno, e em defesa de que essa lei seja aprovada em todo território brasileiro.
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Fonte: BdF Ceará
Edição: Camila Garcia
Entrevista | “A Semana Zé Maria do Tomé é uma conjunção de todas as lutas do ano”
Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca