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domingo, novembro 24, 2024

Filme “Medida Provisória”: obra produzida pela negritude ocupa 150 salas de cinema

PolíticaFilme "Medida Provisória": obra produzida pela negritude ocupa 150 salas de cinema
               O filme Medida Provisória, do diretor Lázaro Ramos, que chega nesta quinta-feira aos cinemas de todo o Brasil, já chamou a atenção antes mesmo do público assisti-lo. Essa é a “primeira vez que um filme feito pela negritude ocupa 150 salas de cinema”, afirma o ator Aldri Anunciação, que interpreta o personagem Ivan na trama. 
Anunciação, para além de ator, é também roteirista, dramaturgo, escritor e produtor. Baiano, foi forjado na mesma escola de Teatro de Wagner Moura. Foi descoberto por seu vizinho: ninguém mais, ninguém menos que o escritor Jorge Amado, que teve papel fundamental para que ele entrasse para o mundo das artes. 
Em 2011 Aldri começou a produção do livro Namíbia Não!, que veio dar origem ao filme que estreia nesta semana. Em 2012 o livro foi lançado e no ano seguinte ganhou o Prêmio Jabuti. Porém, a obra, que foi pensado com uma perspectiva distópica, acabou se revelando algo próximo da realidade.
“Na hora que foi feito o livro eu tava muito certo de que era uma distopia. De que era algo praticamente impossível de acontecer. Acontece que as obras de arte vão sofrendo mutações ao longo do tempo, a obra de arte é uma conexão com a realidade. Ela existe por conta de uma realidade que tá ali.”
Em entrevista ao Brasil de Fato, Aldri Anunciação falou tanto sobre sua trajetória artística e sobre como foi aliar suas ideias a outros roteiristas para fazer nascer Medida Provisória. Ele fala sobre racismo estrutural e os impactos que espera que o filme tenha tanto para a negritude, quanto para a branquitude que se propõe a ser antirracista. 
Confira a entrevista na íntegra:
BdF: Queria que você contasse um pouco sobre o seu trabalho, como foi a sua formação como ator, escritor e como foi o ponto de partida dentro deste universo.  
Aldri Anunciação: Olha, na verdade, o ponto de partida deste universo se confunde um pouco com a minha trajetória. Eu costumo dizer que eu estou em um encruzilhada. Sabe uma encruzilhada que tem quatro caminhos, quatro vias? Artisticamente eu estou um pouco neste lugar. Eu atuo bastante como ator, roteirista, dramaturgo, escritor, produtor e ainda sou meio que um comunicador. Eu tentei mudar a chave da minha carreira algumas vezes, deixar de ser ator para ser escritor, deixar de ser escritor para ser comunicador e depois ser produtor. Mas eu não consegui largar nenhuma delas. Na verdade eu fui deixando as profissões irem indo atrás de mim, de forma que hoje eu estou atuando efetivamente nestes quatro lugares. Eu tenho atuado bastante, eu tenho escrito bastante, sobretudo agora neste momento, eu tenho produzido muito agora com a minha empresa Melanina Acentuada, que é uma das coprodutoras do Medida Provisória. E como comunicador eu tenho um programa de grade que não sai do ar aqui na Bahia há seis anos. 
Agora quando você pergunta pra mim como é que essas funções se forjaram na minha vida, a primeira delas foi de atuação. Quando eu ainda era muito menino eu comecei a me envolver com uma atriz da minha cidade, Salvador, chamada Nilda Spencer, que era uma atriz muito querida por Jorge Amado. E Jorge Amado era meu vizinho. Essa história é muito engraçada. Eu era vizinho do Jorge Amado e ali já deu um pouco o ar da graça da escrita. Eu tinha 10 anos e bati na porta dele porque tinha lido um livro e acho que essa história explica um pouco a minha gênese artística. 
Diferente de hoje, que as crianças de 10 anos estão no TikTok porque sabem o que é e o que não é fama, naquela época com 10 anos de idade você não tinha internet. Você tinha televisão que era a mídia mais forte, você tinha cinema e literatura, e teatro de vez em quando, quando os pais levavam. Então eu não tinha a ideia de que o Jorge Amado era um cara hiper, mega famoso. O meu vizinho era um escritor. E minha mãe me deu o livro Capitães da Areia para ler. Então eu li o Capitães da Areia inclusive numa compreensão de que não era uma ficção. Para uma criança de 10 anos que lê uma história, a história para ela é real. Não tinha uma diferenciação entre jornal e ficção. Eu via o telejornal e era real e eu lia a ficção e ela também era real. Sobretudo quando essa é uma literatura descritiva, como é a do Jorge Amado. 
Por exemplo, Capitães da Areia tem passagens que acontecem na rua em que minha avó morava, na Rua do Taboão. E essa realidade-ficção se misturava muito na cabeça de uma criança de 10 anos de idade. Então eu li Capitães da Areia pensando que Pedro Bala, Volta Seca, todos aqueles caras do livro eram de verdade. 
Então quando eu fui visitar o Jorge depois de ter lido o livro, fui falar pra ele que queria conhecer essa turma. Meio que um surto lúdico-ficcional da criança. E quando ele me viu perguntar dessas crianças, ele não disse pra mim que era tudo mentira, ele apenas me encaminhou para essa atriz, a Nilda Spencer. Era uma grande atriz da época, tipo a Fernanda Montenegro aqui da Bahia. E eu lembro muito bem de eu chegando na casa dela com uma carta. Ela enorme e eu um gurizinho. E ela, lendo a carta, me perguntou se tinha sido Jorge que tinha enviado a carta. E eu respondi que sim, foi Jorge Amado, meu vizinho, que mandou.
E a carta pedia para encaminhar essa criatura louca para as artes, para o cinema, para o teatro. Muito tempo depois, eu já adulto conversando com Nilda, ela disse que na carta dizia "para encaminhar". Não dizia bem se era para a escrita, se era pro teatro, pra atuação, mas que tinha um borogodó de ficção ali que ele achava que poderia ser interessante para as artes. E foi o que ela fez. A Nilda começou a me levar para sets de filmagem quando eu nem sabia o que era um set de filmagem. Eu lembro muito bem do set de filmagem do Nelson Pereira dos Santos, do filme Jubiabá, isso eu lembro bem. Ela fazia uma participação e eu lembro dos atores ensaiando no Solar do Unhão, que é uma arquitetura feita até pela Lina Bo Bardi. Mas eu não tinha uma ideia muito elaborada do que era atuar, escrever. Nada era muito ajustado. Eu lembro que depois de muito tempo com a Nilda me encaminhando, eu acabei entrando num grupo de Teatro chamado Via Magia, aqui de Salvador, que foi o grupo inclusive do qual participou Wagner Moura. A gente participou na mesma época, inclusive. E foi nesse grupo que eu fui me forjando como entendimento artístico. Separando realidade de ficção, já entendia que a ficção era uma elaboração da realidade, era uma proposta de abertura da realidade, para entender melhor a realidade através dela. E, neste jogo, depois de ter tido contato com a atuação, eu comecei a burilar uma escrita, digamos, terapêutica, ficcional, para mim mesmo, que só foi sair do papel muito lá pra frente, lá em 2010. Mas neste período todo eu fiquei trabalhando como ator. 
E agora, sem dar muitos spoilers, vamos falar agora do filme Medida Provisória. Você está no elenco, a obra tem a direção do Lázaro Ramos. Eu queria que você contasse um pouco qual a história do filme. 
Primeiramente esse filme é baseado num livro que eu escrevi, que se chama Namíbia, Não!, que foi lançado em 2012. Em 2013 ele ganhou o primeiro lugar no Jabuti, na categoria Romance para Jovem. O que esse livro conta? Ele fala de um futuro não muito distante, porque tem a percepção de que o futuro já é no dia seguinte. Na escrita, o livro coloca a história de André e Antônio, que são os personagens do filme hoje, cinco anos à frente de quem tá lendo. E é um futuro onde o governo brasileiro, recuperando a ideia de que existe uma ferida aberta com o racismo, e tentando responder todas as demandas da negritude brasileira de reparação social, resolve lançar uma medida provisória de reparação social que envia todas as negras e negros brasileiros de volta para a África para resolver um problema causado lá atrás na época da colônia. 
Então a medida surge como uma coisa positiva para a negritude, mas na verdade ela coloca o argumento da negritude contra ela própria. Ou seja, "vocês pleiteiam tanto a África que agora vocês vão voltar". Basicamente, a história do livro é essa. Só que tem dois primos, o André e o Antônio, que descobrem um furo na medida provisória: eles não podem deportar todos os negros à medida em que alguns deles fiquem em casa. Existe o Artigo 150 do Código Penal que impede qualquer pessoa de entrar na sua casa para fazer alguma apreensão. Então, no livro, a elaboração desses dois primos, confinados, questionando se devem voltar pra África ou não. O filme é baseado nessa pequena história.
O que ele faz: quatro roteiristas abrem essa história, levam para o cinema como uma comédia romântica, que se transforma em thriller, que se transforma em aventura. E aí a gente entra no cenário do filme, que gera um quiproquó danado no Brasil, a partir de uma medida provisória que exige que todos os negros voltem para a África. E tá falando de 56% da população que é negra. Então, isso cria uma atmosfera distópica, catastrófica socialmente, e aí vão revelando alguns furos e algumas questões ainda mal resolvidas no nosso país, como o racismo, a questão da identidade, ou seja: de que África nós pertencemos? Quando você fala de África, é um continente muito grande, são 53 países. Então traz isso, traz as questões da interracialidade, de mães negras com filhas brancas. Quem volta? É a filha? É a mãe? Ou a filha vai junto porque é branca mas a mãe é negra? Então, várias questões o filme vai trazendo de forma bem humorada e, por vezes, trágica. Então esse é o filme Medida Provisória. Um filme que nasce de um livro e se transforma em uma cinematografia, digamos, até provocativa, socialmente. 
Você mencionou que o trabalho tem esse caráter distópico, mas visualizando agora esse relato, tem um pé muito grande na realidade concreta do Brasil. De que forma você avalia que a história, tanto do livro, como agora do filme, se conecta de fato com a realidade Brasileira?
Na hora que foi feito o livro eu tava muito certo de que era uma distopia. De que era algo praticamente impossível de acontecer. Acontece que as obras de arte vão sofrendo mutações ao longo do tempo, a obra de arte é uma conexão com a realidade. Ela existe por conta de uma realidade que tá ali. O mundo material-prático existe e a arte surge dela. À medida que esse mundo material-prático vai mudando, ou seja, à medida que o mundo vai mudando, a obra vai mudando junto. Eu acho que isso que forma os clássicos. Vamos pensar os grandes clássicos da literatura: eles estão ali porque a realidade vai mudando e a gente vai tendo uma nova leitura da obra. 
Eu acho que com o Namíbia, Não!, que é o livro e agora com o Medida Provisória, que é o filme, aconteceu o mesmo. O livro surgiu como uma distopia, uma ideia fantasiosa, impossível de acontecer. O que é a distopia? É aquela realidade que tem uma aparência de impossibilidade. Ela surgiu neste lugar. Porém, com o tempo, com as mudanças que a gente vem sofrendo ao longo destes últimos anos, a obra foi ganhando um aspecto de revelação de uma realidade possível. Ela quase tá se aproximando de uma obra realista, porque a gente tá falando de um governo que, digamos, exerce autoridade legal sobre o seu povo. O Namíbia Não! mostra que tem uma medida provisória exigindo que todos retornem para a África, sem fazer uma consulta pública a essa negritude, sem perguntar a essa negritude o que é esse retorno. Ele é mítico? Ele é lúdico? Quando a gente reclama à Mãe África é no ambiente lúdico, fantasioso, de reforçar a nossa identidade, de sabermos de onde viemos. E à medida em que eles entendem esse retorno para a África como algo real, concreto, de retorno físico, a ponto de colocarem a gente nos aviões negreiros retornando para a África, significa que ele tá exercendo a sua autoridade máxima. 
E a gente tá percebendo um pouco isso em vários setores da sociedade hoje. Da cultura, da política indígena, a gente tá percebendo que existe uma não-escuta dos segmentos sociais do país. Então parece que o Namíbia Não! e o Medida Provisória tão se aproximando muito de uma realidade que tá mudando a linguagem da obra. Ela tá se tornando não mais uma obra distópica, como foi na origem do livro, mas, agora, uma obra talvez realista. 
Como você avalia a repercussão do Medida Provisória num ano tão decisivo como tá sendo 2022? Nós estamos em um processo eleitoral em curso com eleições em outubro. Que tipo de influência você acredita que o filme terá nos debates que vão atravessar as eleições neste ano?
Total, porque houve uma pressão muito grande em cima da estrutura cultural do país. As estruturas culturais se desidrataram, não por uma questão de falta de conteúdo para esses produtos artísticos. Tô falando de música, de literatura, de cinema, inclusive de televisão. Não por falta de conteúdo ou de assunto. Não por falta de técnicos ou artistas competentes para isso. Mas por uma, digamos, desestruturação da criação artística. Uma ausência de lastro para que ela possa existir, para que ela possa se expressar. A cultura e a arte em qualquer lugar do mundo existem a partir da sua expressão. Se você não permite que a cultura e a arte se expressem, ela deixa de existir. Então essa desistência de existência por conta do governo é uma pressão. Tá pressionando a arte para que ela deixe de existir. Só que quando você pressiona algo você tem uma contraforça, ele traz uma contranarrativa, ele traz uma contra-ação. Ele se contrai. 
O que eu estou percebendo é que esse filme Medida Provisória é uma contra-ação disso tudo. Ele surge como uma contra-ação. Quando eu falo pra você que ele deixa de ser uma obra distópica e tá se aproximando de uma obra realista ou uma obra que propõe uma revelação do que está acontecendo no país, não só em termos raciais, mas também em termos também sociais no modo amplo, como por exemplo as questões de gênero, você entende que ela é uma resposta para algo. E se a gente está em um ano político é certo que todas as expressões artísticas - e aí eu tô ampliando para além do Medida Provisória - todas as expressões artísticas, à medida que elas estão no palco, elas vão falar sobre o que está acontecendo no país. Elas vão apontar para um desejo de mudança. Porque o que é a eleição? É a oportunização da possibilidade de mudança. E quando você vê uma possibilidade de mudança, você age. Artisticamente ou socialmente. Eu acho que o Medida Provisória é uma ação artística de resposta ao que foi feito ao longo dos últimos quatro anos. 
Então eu diria que é orgânico. Mesmo que não se fale o nome de políticos na obra, mesmo que não se cite partidos políticos, mesmo que não se cite uma ideologia política ali na obra. A obra é uma aventura, uma comédia romântica que se torna um thriller policial – a crítica até coloca que é um Black Mirror misturado com Parasita – porque tem essa atmosfera mesmo que permite a gente assistir o filme inclusive comendo pipoca. 
Quando eu tô falando aqui dessas questões eu tô abrindo o filme. Você consegue assistir o filme comendo pipoca e bebendo uma Coca-Cola. Só que eu garanto que que ao longo do filme você vai colocar um pouco da Coca-Cola de lado, pegar a pipoca, deixa de lado e vai abrir o olho assim, porque ele revela. E como estamos em um momento politicamente precipitado, a associação vai ser ligeira, vai ser imediata. Eu tenho percebido isso nas pré-estreias. O público que assiste, independente de ideologia política, ele começa a pensar na política brasileira, eles começam a pensar na possibilidade de um governo que pressione o segmento, que no caso do Medida Provisória é o segmento da negritude, expulsando essa negritude do país a ponto de deixar o país completamente embranquecido. E eu não quero dar um spoiler do que acontece no final, mas com certeza é um filme que precipita questões políticas atuais do que tá acontecendo no país. 
E sobre o seu trabalho, como foi o processo de gravação? Mais especificamente, como você reagiu e percebeu essa transição do livro para o filme, esse movimento da história que saiu da literatura e agora foi pra tela grande, foi pro cinema? 
Olha só, eu sou o autor da obra original, do livro Namíbia, Não!, que inclusive tá numa antologia chamada Trilogia do Confinamento pela Editora Perspectiva e também atuo no filme. No meio do caminho tem uma outra função que foi agregada a mim, que foi a função de roteirista. Então assim, eu tava sozinho na criação do livro, da obra. [No filme] eu entro numa sala de roteiro – porque o que acontece com os roteiros de cinema é que são salas de roteiros, você entra e você não é o roteirista sozinho – e nessa sala tinha o Lázaro Ramos como roteirista. Eu assumi a função de roteirista também, o Luza Silvestre, maravilhoso, de São Paulo, também e o Elísio Lopes Junior, também incrível. 
Quatro pessoas incríveis cuidando, digamos assim, de um filhote que eu pari sozinho lá atrás no livro. Aí você pergunta como foi essa transição. Foi dolorosa pra algumas pessoas. Pra mim foi doloroso ver a obra sendo mexida. Eu tava ali meio que quase como um advogado do diabo tentando manter todas as estruturas originais, que, na verdade, a equipe conseguiu manter. As personagens estão lá, todas elas, inclusive as baseadas em fatos reais, o André e o Antônio, a Capitu. O que é que muda? Na verdade é a busca de linguagem. Foi muito bonita essa migração porque foram quatro roteiristas preservando uma obra original que é a história do livro lá de 2011, que em 2013 ganhou o Jabuti. E eles tinham o maior carinho pela história e pelo modo como ela era contada. Só que eles tentavam adaptar a linguagem.
A linguagem teatral é muito unívoca no seu espaço. É um espaço único. Você tem ali a cena do teatro e tudo acontece naquela sala. No cinema você multiplica isso por 10, são 10 cenários. Tem 10 espaços que eu chamo de territórios-debates. Eu acho que todo longa metragem, cada cena que você vê, mesmo que não tenha palavra locutória sendo falada, tá tendo debate entre duas figuras. O bom filme é aquele que tem duas figuras em contradição. Repare: são aqueles filmes que trazem a ação, a aventura ou a comédia, mas com conflito de ideias. Então o que acontece com a migração? Ela explode em vários cenários que o teatro não podia abarcar e sai do apartamento dos primos, que tá na parte central do filme, e vai para as ruas, vai para o trabalho da namorada do André, que é uma médica, vai na sala de cirurgia onde ela foi capturada pra ser enviada para a África, vai na casa da vizinha, fica torcendo para que eles retornem para a África porque ela não suportava mais aquela vizinhança negra. Então o filme vai para esses lugares e vai revelando cada vez mais essas veias e esses cantos e recantos socialmente obscuros e dolorosos do nosso país. Essa migração funcionou como uma explosão da obra original, em vários estilhaços, em vários cantos que eu chamo de território-debate. 
Ao se deparar com essas narrativas e, eu acredito que até com a própria experiência pessoal do racismo, você vislumbra aí num futuro próximo transformações concretas e esperança no olhar do povo brasileiro?
Eu queria começar dizendo que essa obra é muito pessoal mesmo. Eu diria inclusive que eu sou um misto do André e do Antônio. Muita gente pergunta 'você que fez a obra original, você é um ou outro?' O André, interpretado pelo Seu Jorge, que é mais louco, mais subversivo mesmo com as leis, muito mais emocionado. E o Antônio, que é o Alfred Enoch que faz, é um cara mais polido, ele tá inclusive estudando diplomacia, exercita o lugar da diplomacia. Então eu sou um pouco dos dois, inclusive a vizinha, dona Izildinha, ela existe realmente – e tomara que ela não veja o filme (risos) – porque ela é uma pequena vilã na história. Então assim, é uma obra muito pessoal mesmo. Todo autor traz de si o substrato das dores das personagens. Claro, tem autores que pesquisam as dores alheias e eu acho isso muito bonito. Inclusive as narrativas negras que foram escritas por brancos eu super entendo e compreendo e acho que tem o seu valor, mas falta ali o substrato de quem sentiu na pele. E eu acho que essa obra, por exemplo, desde a escrita, aí quando ela vira cinema ela absorve também as dores do Lázaro Ramos, absorve também as dores do Seu Jorge, que eu inclusive já conversei muito com ele. Absorve também as dores de Taís Araújo, que já passou por situações de injúria racial e todo mundo vai narrando aquilo com muita propriedade. 
O que acontece? Nessa pesquisa para fazer esse filme a gente percebeu que existem possibilidades positivas sim. Ele é um filme até afropessimista, pensando aqui o conceito do Wilderson, aquele cara que traz esse conceito. Ele é, ele tem um quê de afropessimismo, que coloca a questão da mortandade da negritude do mundo como forma terapêutica de uma sociedade racista. É como se o mundo se alimentasse da morte da pele negra para poder existir psiquicamente. É como se a mortandade da juventude negra brasileira fosse algo necessário terapeuticamente para uma sociedade racista. Então o afropessimismo trabalha com essa ideia, esse conceito da antinegritude. E dentro desse contexto da sociedade, viver da morte da pele negra é uma forma pessimista de se encarar a sociedade. Porque se a nossa morte é terapêutica significa que ela nunca vai deixar de ser utilizada, nunca vai deixar de ser programada por uma instituição estatal. Mas existe também dentro desse contexto uma coisa positiva. Quando você percebe as pessoas que fluíram o livro e tão fluindo o filme de forma até divertida, porque o filme dá pra comer pipoca, a gente percebe uma mobilização de uma branquitude também em relação a isso. É o famoso ser antirracista. Não ser somente não racista. É ser antirracista no sentido de pensar como eu vou agir em relação a isso, como é que eu vou me posicionar em relação aos privilégios estruturais que são organizados para a branquitude. Como é que eu vou abrir mão de alguns pontos para que outros possam absorver? Como é que você vai ter 150 salas de cinema com um filme de preto? É a primeira vez que isso acontece! É a primeira vez que a gente tem um filme feito por negritude, um filme escrito por negros, um filme baseado em um livro também escrito por um negro, dirigido por um negro, atuado por negros e negras – claro, na sua equipe tem ali 20% de branquitude – que é importante para que isso aconteça porque o racismo só existe na fricção entre branquitude e negritude. Então não adianta fazer um filme somente com negros se eu quero falar de racismo. Tem que ter o Afonso junto aqui pra falar sobre, é uma fricção de ambos. 
Então a gente percebe que para além do pessimismo que essa obra possa mostrar, ela também estimula um otimismo de uma branquitude que tá querendo se mobilizar, que tá querendo acionar a chave do antirracismo. Tá querendo encontrar o caminho de como agir para que as coisas não aconteçam. Tão entrando nos lugares e vendo todo mundo branco e pensando 'meu Deus, realmente eles tem razão, só tem branco nesse lugar aqui e eu nunca tinha percebido isso'. E tão começando a refletir sobre esses lugares e tão saindo desses lugares completamente exagerados na sua etnia. Tem brancos que estão dizendo que não vão mais frequentar lugares que só tem brancos. Eu vou frequentar lugares que tem, minimamente, uma parcela diversa ali dentro. E aí estamos falando também de outros lugares. A questão de gênero, das mulheres, dos indígenas, enfim. Eu acho que ele é otimista nesse sentido, que as pessoas assistam e se mobilizem para pensar como resolver isso. 
            Edição: Felipe Mendes


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