Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo, escritor e – acima de tudo – um intérprete do mundo e da sociedade -, esteve em Porto Alegre na primeira semana de abril e o Brasil de Fato esteve junto no espaço. A convite do mandato da deputada federal Maria do Rosário e da Tenda do Bem Viver, Boff veio compartilhar de momentos de diálogo acerca do momento que a humanidade atravessa, das questões que nos afligem enquanto raça humana e que colocam em risco a própria existência da Mãe Terra – mudanças climáticas, devastação da natureza, abuso da exploração dos recursos naturais e da própria exploração do ser humano pelo ser humano.
Questões pontuais sobre o Brasil e o desafio de uma mudança urgente de rumos também foram abordadas por Boff, que não se furtou em, do alto de seus 90 anos, posicionar-se à margem esquerda do caminho. Ele pontuou que as escolhas que o povo vai fazer no processo eleitoral vão além do simples caráter político-ideológico, situam-se num momento de escolher entre a barbárie e a civilidade.
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Boff é pontual: mudanças são necessárias, rupturas são necessárias, nos rumos coletivos e nas escolhas individuais, tanto no que se refere às questões geopolíticas, quanto nos pontos nacionais, quanto nas nossas próprias relações interpessoais. “É improvável uma pessoa só mudar o mundo, mas é perfeitamente possível que cada um de nós mude esse pedaço do mundo que é representado em si mesmo”.
A revolução dos pequenos foi mencionada, a mudança a partir de baixo, a transformação que se busca pelo reencontro do ser humano com a ideia de que “ou nos salvamos todos, ou ninguém se salvará”. Em pouco mais de uma hora de conversa, uma aula de vida, de esperança, de resistência. E, sim, uma convocação ao agir.
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O mundo está em perigo
“Nós vivemos momentos dramáticos da nossa história, as ameaças que pesam sobre o sistema terra, sobre o sistema vida, que podem eliminar nossa espécie humana, nunca estiveram tão presentes como agora”, pontuou Boff logo no início da conversa. Citando Noam Chonski, afirmou que infelizmente parece haver pessoas suficientemente loucas no Pentágono (Estados Unidos) e na Rússia para começar uma guerra nuclear, cuja principal consequência seria a liquidação da espécie humana. “O céu fica branco por dois a três anos, o sol não aparece, todos os ecossistemas morrem porque não se dá a fotossíntese, todas as safras perecem, as pessoas lentamente morrem todas, todas... Infelizmente existem loucos suficientes capazes disso”, conjecturou. A guerra entre Rússia e Ucrânica – que qualificou como vergonhosa e covarde – foi apontada como exemplo de barbárie, alertando que é importante que todos saibam quais são as principais ameaças que pairam sobre a humanidade.
Se a guerra é a face mais visível dessas ameaças, Boff aponta que não podemos desconsiderar outros fatores, como o aquecimento global, por exemplo: “Nós não estamos indo na direção do aquecimento global, nós estamos dentro dele”. As mudanças climáticas resultam em catástrofes previstas, anunciadas, como os alagamentos e desabamentos ocorridos no Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, onde centenas perderam a vida e milhares ficaram desabrigados e desamparados. “Esses fenômenos terríveis estão acontecendo com muito mais frequência e mais gravidade, todos somos um pouco responsáveis por essa nova fase do planeta”, avaliou
A pandemia que ainda nos ronda
Teólogo veio a convite do mandato da deputada federal Maria do Rosário e da Tenda do Bem Viver / Foto: Julia Flores
Outro ponto que pautou a reflexão de Leonardo Boff é a pandemia do coronavírus, que já vitimou mais de 6,2 milhões de pessoas no mundo - só no Brasil são mais de 660 mil vidas perdidas. Segundo ele, a maior parte dessas vidas poderiam ter sido salvas se aqueles que estão no poder tivessem tido posturas diferentes desde o momento em que foram alertados. “Os chefes de estado foram alertados que viria um vírus muito perigoso, foi solicitado que tomassem medidas hospitalares para atender a população. Ninguém fez nada. Ele veio e pegou todo mundo de calças curtas”, afirmou. Para Boff a situação só não foi mais dramática no Brasil pela existência do SUS (Sistema único de Saúde). Países europeus que não possuem um sistema de saúde pública efetivo foram lembrados como exemplos do que não se deve fazer em uma situação como essa.
Os baixos índices de vacinação no continente africano também foram um dado apresentado para demonstrar como os mais pobres foram relegados à própria sorte no período de pandemia. A resposta de países comunistas como a China – que produziu dezenas de milhares de doses de vacinas – e Cuba – que enviou médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde para países desassistidos (recusados no Brasil, cite-se) são relembrados como casos que fizeram diferença positiva para a retomada da normalidade. “Dizem que eu sou pessimista. Eu respondo como Saramago: eu não sou pessimista, a realidade que é péssima”, afirmou.
O vírus e o antropoceno
Leonardo Boff afirmou que o vírus da covid-19 deixou explícito lições à humanidade. “A Mãe Terra contra-ataca, nos dá essa lição, coloca de joelhos o sistema capitalista, mais ainda as potências militaristas que estão cheias de armas nucleares, químicas e biológicas e nada puderam fazer com o vírus.” Na sua interpretação é preciso que estejamos atentos, porque “todo mundo tem falado sobre as vacinas, as máscaras, a necessidade de não aglomerar e tudo isso é muito importante, mas quase ninguém tem falado da natureza, do lugar de onde veio o vírus, e o vírus é consequência do antropoceno, o ser humano se fez a grande ameaça da vida, o ser humano avançou em cima das florestas, desmatou, poluiu as águas, o solo, ele acabou com o habitat”, disse.
“Se nós não cuidarmos desses aspectos, não desenvolvermos uma relação mais serena com a vida, se não mudarmos a relação com a vida, vão surgir outros vírus, ainda mais graves”, acrescentou. “Isso é antissistêmico, os chefes de Estado não aceitam isso, a maioria da população não sabe nada disso, os meios de comunicação não falam disso, raramente aparece algo nos jornais, mas nós temos que falar sobre isso, como um imperativo ético, por amor a humanidade, para garantir um futuro para nós e para toda a natureza” emendou. "A Mãe Terra não criou só a nós, criou a comunidade de vida como fala a Carta da Terra, todos os demais seres, as plantas, os animais, os microrganismos, todos são filhos e filhas da Terra”, arrematou, apontando a complexidade e também a fragilidade do equilíbrio que sustenta a vida.
O esgotamento da Mãe Terra
“Tem uma coisa que é muito grave, é a chamada sobrecarga da terra. São aqueles bens e serviços que são fundamentais para a nossa vida que estão chegando ao fim ou mesmo que já chegaram ao fim”, disse. Conforme explicado pela WWF, o Dia da Sobrecarga da Terra (em inglês, Earth Overshoot Day) marca o dia do ano em que a demanda da humanidade por recursos naturais supera a capacidade da Terra de produzir ou renovar esses recursos ao longo de 365 dias. Sobre esse ponto, relembrou que todos os anos a ONU publica os dados e no último período essa data referencial foi 27 de agosto de 2021.
“Na despensa da terra, todos aqueles elementos renováveis fundamentais para a nossa vida se acabaram nesta data. E aquelas populações que consomem daquilo que a terra não pode mais dar recebem em contrapartida a resposta com mais aquecimento, mais vírus, mais eventos extremos, mais tufões, mais guerras, mais conflitos sociais... é a forma como Gaia, a Mãe Terra reage a violência que sofre", ponderou. Boff explicou que nessa progressão, se o consumo desenfreado dos recursos naturais chegar à casa do mês de outubro, poderemos alcançar a situação de colapso da vida. “Aí nós vamos ao encontro do fim, a maioria não toma cuidado. O papa fez um pronunciamento dizendo que nós estamos em um alarme ecológico. Na última encíclica ele afirmou que estamos todos no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou ninguém se salva. A ecologia não é só uma questão da ciência, é uma questão política.”
Casa cheia para a atividade que contou com a presença de Leonardo Boff / Foto: Julia Flores
O que vai ser dito no Brasil através das eleições
“No Brasil, o que eu acho extremamente urgente neste momento, ano de eleições, é que nós temos que fazer um esforço tremendo para alijar do meio político quem é inimigo da vida, aquele que se aliou com o vírus, que é um inominável, que não deve nem ser citado, que não demonstrou nenhum sentimento de compaixão com aqueles que perderam seus pais, seus irmãos, seus avós”, afirmou Boff, claramente se referindo ao presidente Jair Bolsonaro. “Ele é inimigo da vida, inimigo do amor, prega o ódio, exalta a tortura, toda hora nos ameaça com golpe de estado, é o mais miserável dos brasileiros. Nós não podemos permitir que uma pessoa dessas ganhe uma eleição que nos obrigue nos viver mais quatro anos assim, se a gente observar na história, nunca governos que se basearam na violência, na mentira, no ódio, prosperaram. A própria vida se rebela contra esses governos. São vítimas da violência que eles mesmos pregam”, completou.
Para uma efetiva mudança de rumos no país, Boff elencou três pontos fundamentais: eleger um chefe de estado que recupere o país e renove todas as políticas sociais que beneficiaram milhões e milhões de brasileiros; criar uma grande bancada em nível estadual e federal, de deputados e senadores que garantam bases que sustentem o projeto político desse novo executivo; que todos saibam da importância do envolvimento pessoal para criar as bases populares, criar comitês de consciência política e eleger o projeto que tem mais centralidade nos pobres.
A escolha que vai ser feita
“Todos nós temos que tomar consciência da gravidade desse momento, talvez essa eleição seja o momento mais grave da nossa história, porque vai se decidir qual é o nosso destino, se é o destino de morte, da violência, da brutalidade, da insanidade... ou se resgatamos aquilo que é próprio dos brasileiros, a nossa abertura, a nossa gentileza, a nossa alegria de viver”, refletiu Boff, aprofundando a análise no momento atual do Brasil. "É triste existir sem viver. Porque não basta existir. Nós queremos viver. Viver com alegria. Conviver com os outros, e isso está sendo negado nesse país por essa onda de ódio, de exclusão, contra os homoafetivos, contra os indígenas, contra as mulheres, contra os pobres e as periferias."
“Nós vivemos um momento dramático. Não é uma tragédia, é uma grande crise da nossa cultura, uma crise de civilização, de relacionamento. Nós não podemos voltar àquela ordem anterior, porque na ordem anterior nos veio o vírus e o vírus deu uma grande lição no capitalismo”, apontou Boff. “O capitalismo coloca no centro o lucro, nós colocamos a vida. Eles colocam a concorrência, nós colocamos a cooperação. Eles colocam o individualismo, nós colocamos a solidariedade. Eles colocam a exploração sistemáticas da natureza, nós colocamos o cuidado com a natureza. Eles colocam o mercado acima da sociedade, nós colocamos a sociedade acima e ela recua os mercados”, exemplificou.
É hora de decidir entre civilização e barbárie
“Nós não queremos que a tortura volte de jeito nenhum. As ameaças persistem. Eles falam de milhares de milicianos armados. Nós precisamos temer sim, porque nessas eleições pode haver sangue. Como diz Luiz Nassif, a direita brasileira é cruel e sanguinária, ela pode usar as armas que foram distribuídas para matar. Não é a tradição brasileira matar políticos, mas dessa vez nós precisamos estar mais atentos”, alertou. “Temos uma tarefa muito grande esse ano, de consciência, de incluir na nova política a ecologia como um dado estruturante, como um dado substancial.”
Para Boff, nunca antes na história o povo foi chamado como hoje para um novo começo do Brasil, pois é hora ou prolongar a dependência ou reforçar a refundação: “Queremos reforçar a refundação do nosso país, nunca antes houve um projeto nacional, as classes dominantes fazem conciliação entre elas, de costas para o povo, o povo não entra, e quando não conseguem dão golpes”. Segundo ele, inclusive o golpe de 2016 que tirou Dilma Roussef do poder não acabou ainda. “Nós estamos a beira de um abismo no Brasil. Não queremos cair dentro dele. Queremos resgatar o nosso país, resgatar a democracia, o respeito à constituição”. Em suas palavras, “a democracia hoje é uma farsa, é uma democracia de baixíssima intensidade, corrupta".
A transformação começa de baixo
“O povo tem que ser sujeito, a coisa tem que vir de baixo”, afirmou Leonardo Boff, mais uma vez relembrando o posicionamento do Papa Francisco: “O Papa em todos os seus pronunciamentos, nas duas encíclicas, nos quatro encontros que teve com os movimentos sociais e populares, sempre repete isso, não esperem nada de cima, que de lá sempre vem mais do mesmo ou até pior do mesmo, comecem embaixo vocês, criando vossas organizações, comitês, vivam uma democracia participativa e não só representativa, façam uma economia circular, humana, ecológica, que respeita os ritmos da natureza, vivam já as relações novas, uns vinculados uns aos outros como irmãos e irmãs, criando um novo tipo de humanidade e guardem sempre esses três pontos: terra, trabalho e teto”.
A respeito desses últimos três pontos geradores defendidos pelo Papa Francisco, Boff explica que “todo mundo tem direito a um teto porque não somos animais que vivem ao relento; tem direito à terra não apenas para ter uma posse, mas para que como muito bem dizem os movimentos do campo, ela serve para produzir alimentos para o povo; por fim tem direito ao trabalho porque nós não queremos receber nada, queremos que aquilo que seja necessário para nosso bem viver seja fruto do trabalho”.
A fé e a ciência são mais próximas do que aparentam
Leonardo Boff relembrou que o Papa, em sua última encíclica, repetiu a ciência, afirmando que todos os seres vivos são irmãos e irmãs. “Todos os seres vivos, desde a bactéria mais original de 3,8 bilhões de anos por onde começou a vida, passando pelas grandes florestas, pelos dinossauros, pelos animais, por você, por mim.” Amparado nesse raciocínio, colocou em destaque a conclusão defendida tanto pelo Papa Francisco quanto pela Carta da Terra. “Todos somos irmãos e irmãs, não por causa da mística de São Francisco de Assis que chamava todos de irmãos e irmãs, sabemos por um dado de ciência, pela decodificação do código genético, quais são os tijolos que constroem a vida e então temos a compreensão, não poeticamente, não retoricamente, não misticamente, mas cientificamente somos de fato irmãos e irmãs”, explicou.
O problema identificado por Boff é que “não nos tratamos como irmãos e irmãs, derrubamos as florestas, matamos os animais, envenenamos os solos, maltratamos a Mãe Terra”. O esgotamento dos recursos naturais voltou a pautar a reflexão, exemplificando a ideia de que o planeta não é um baú: “A terra não é um baú de recursos de onde vamos tirando e tirando em função de um projeto de crescimento ilimitado, é mentira dizer que a Terra é um baú de recursos ilimitados, ela não aguenta, ela é velha, com bens e serviços limitados. Não dá para continuar assim, com cada país tendo que mostrar que o PIB cresceu a cada ano”.
A reflexão dos andinos tem muito a nos ensinar
“Enquanto um grande número de pessoas vivem na miséria e na fome, um pequeno grupo vive na maior riqueza; para que muitos vivam bem, milhões tem que viver mal”, indicou, ao introduzir a reflexão acerca do lema dos povos andinos, “que é o viver bem, ter harmonia entre todos, que começa em casa na família, harmonia com a natureza, harmonia na sociedade”. Boff apontou ainda que “a Mãe Terra, a Pachamama, nos dá tudo o que precisamos, e nós só deveríamos trabalhar onde há regiões onde a terra não consegue produzir o suficiente, então nós chegaríamos e ajudaríamos a Mãe Terra. O tempo livre ficaria para convivência, para contar nossas histórias, fazer nossos teatros, visitar a natureza, confraternizar entre nós. Tempo para viver e não só tempo para trabalhar e acumular. Alegria de viver e conviver”.
Para Leonardo Boff, o “projeto dos andinos será o grande projeto quando a humanidade se der conta de que nós vivemos em uma única Casa Comum, em que todas as tribos da terra são juntas, se confraternizam, se respeitam nas suas diferenças”. Ele explicou que é disso que se refere quando a economia de Francisco e Clara aponta para uma biocivilização, “uma civilização onde é a vida que conta, mas não só a nossa vida, toda vida na sua diversidade, porque nós vivemos da vida que vem dos solos, que vem da natureza, que vem do sol, nós vivemos a natureza, e se nós não cuidarmos disso, nós não garantiremos o nosso futuro”.
“O momento é decisivo na nossa história, a Terra está ameaçada. A questão ecológica deve ser colocada ao centro dos debates e das ações, caso contrário vamos a um caminho sem retorno, a uma grande catástrofe” alertou. “Não quero assustar vocês, quero sim despertar a angústia em vocês, porque aquele que tem angústia se move”, disse. A respeito da vida resumida a narrativas mediadas, Boff fez mais um alerta e também um chamado: “Vocês sabem que tudo o que nós falamos de alguma forma eles estão gravando. Mesmo que desliguemos os computadores e os telefones eles tem meios de gravar tudo o que nós falamos. E agora nós dizemos a eles, para que gravem, para que escutem, para que saibam todos: que nós não vamos desistir! Nós não vamos desistir!”.
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira