Lições da história: como terminam as pandemias e por que a covid-19 preocupa tanto

Diário Carioca

Seis meses após a descoberta do novo coronavírus, cientistas correm contra o tempo para desenvolver uma vacina eficaz. A história da medicina, no entanto, mostra que a erradicação de uma doença pandêmica é um acontecimento raro e, no caso da covid-19, pouco provável.

De todas as doenças infecciosas que causaram pandemias, apenas a varíola foi erradicada, em 1980. As demais foram controladas por meio da imunização de rebanho, de medidas de prevenção, ou simplesmente se tornaram menos letais após mutações no vírus causador.

Professor emérito de História da Medicina na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, Frank Snowden lembra que o que possibilitou a erradicação da varíola era a ausência de um hospedeiro animal: “Agora, temos uma doença [covid-19] que veio de animais, por isso sempre haverá o risco de que ela seja transmitida novamente. Então, é improvável que consigamos erradicá-la”.

Vai durar para sempre?

Não há como prever o tempo de duração de uma pandemia. A de gripe suína, por exemplo, durou cerca de 20 meses e terminou oficialmente em 10 de agosto de 2010. Naquele dia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou que o mundo havia superado o estágio 6, ou seja, a última etapa de alerta pandêmico.

Os níveis de alerta correspondem ao nível de circulação do agente causador de uma zoonose em humanos após a primeira transmissão. Entre as fases 1 e 3, a doença circula principalmente entre animais e é raramente transmitida a humanos – como a febre amarela no Brasil. Na fase 4, a doença passa a circular entre humanos sem a necessidade de transmissão por animais. O estágio 5 indica uma transmissão local e o 6, global.

Retornar ao estágio 5 não significa que uma doença está erradicada, mas apenas que sua transmissão volta a ser restrita a nível local.

Quase sempre, regiões com sistemas de saúde e saneamento precários levam mais tempo para conter o avanço da doença e registram taxa de mortes elevada por mais tempo. Por exemplo, dez anos após a OMS decretar o fim da pandemia de H1N1, o Brasil mantém uma média de quase duas mortes por dia – só no ano passado, foram 796.  

Desigualdades

A transmissão de uma doença não termina com a fabricação da vacina. O segundo passo é descobrir uma forma de distribui-la globalmente, criando mecanismos que permitam o acesso de países pobres a doses suficientes para sua população. Na pandemia de gripe suína, países ricos concentraram a maior parte das vacinas e foram os primeiros a reduzir os níveis de contágio.

“Além disso, pelo que se sabe até agora, o vírus da covid-19 [SARS-CoV-2] não produz uma imunidade robusta e duradoura no organismo de quem o contrai. Portanto, a tarefa de desenvolver uma vacina eficiente é muito mais complicada e talvez não seja possível nesse caso. Ou, se for possível, talvez tenhamos uma vacina com eficácia de 20% ou 30%”, analisa Snowden, autor do livro Epidemics and Society [em português, “Epidemias e Sociedade”].

No caso do HIV, vírus causador da AIDS, a OMS mantém o status de pandemia desde 1980, mas há tempos ela deixou de ser a principal notícia dos jornais. Em 2019, 25,7 milhões de pessoas eram portadoras de HIV na África Subsaariana. Segundo a UNAIDS, o vírus já matou 35 milhões de pessoas em todo o mundo.

O professor da Universidade de Yale adverte que o “fim de uma pandemia”, mais do que uma conquista da ciência, costuma ser uma ilusão construída socialmente, que varia conforme o país ou a visão de mundo de cada indivíduo.

“Se você conversar com pessoas nos EUA, a maioria vai dizer que o vírus HIV foi erradicado no país. Isso é muito mais uma forma de pensar do que uma realidade objetiva. O vírus segue sendo transmitido, as pessoas estão adoecendo e morrendo. Quando isso acontece, não podemos considerar que acabou”, compara Snowden. “Sabemos que isso também acontece na África do Sul, por exemplo, ou em Botsuana, mas lá as pessoas estão cientes disso e não têm a ilusão de que ela terminou”. 

A pandemia do novo coronavírus tende a radicalizar essas diferenças. Frank Snowden faz um paralelo com a gripe espanhola, que infectou 500 milhões de pessoas entre 1918 e 2020.

“A gripe espanhola parecia ser socialmente mais neutra que a covid-19. Ou seja, ela se espalhava quase que igualmente entre as classes, e não desproporcionalmente entre os pobres, como começamos a ver hoje”, compara. “As condições encontradas nas favelas do Rio de Janeiro, nas periferias da Argentina, da Índia, na África Subsaariana, são muito propícias para uma explosão da covid-19 e para que ela avance violentamente por um longo tempo em determinados locais”.

Isso não quer dizer, necessariamente, que a covid-19 será erradicada em breve na Europa e nos EUA. “As atitudes de Donald Trump [presidente dos EUA] e Boris Johnson [primeiro-ministro do Reino Unido] levam a crer que esses países não irão superar a doença tão rápido assim. Durante os próximos anos, pode haver a possibilidade de efeito rebote”, finaliza o historiador.

::Líderes em casos de covid têm governos conservadores ou demoraram a adotar isolamento::

Antes de Cristo

Nos EUA, a taxa de mortes por covid-19 entre afro-americanos, parcela da população com acesso mais precário à saúde e condições adequadas de moradia, é maior que em outros estratos sociais. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, o pico de casos começa a ser superado nos bairros ricos, mas não para de crescer nas periferias.

Não é de hoje que o surgimento de doenças infecciosas evidencia desigualdades pelo mundo. Professor de História Antiga da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e idealizador do curso “O Passado das Epidemias”, Brian Kibuuka conta que a posição dos indivíduos na pirâmide social condiciona suas chances de sobrevivência a doenças infecciosas há milhares de anos.

A ideia equivocada de que pessoas ‘etnicamente superiores’ estariam imunes a determinadas doenças também é muito antiga.

“No livro 8 das Histórias de Heródoto [440 a.C] há um relato em que Xerxes, o rei persa, está voltando para casa com seu exército após perder uma batalha. No meio do caminho, seus soldados adoecem por conta das péssimas condições sanitárias, e são deixados à míngua. Enquanto isso, o imperador, que tem acesso a uma comida melhor, não tem contato com esses soldados e acaba sobrevivendo, junto com um grupo muito pequeno de pessoas”, conta.

Embora sejam mais raras, também há relatos de epidemias que – ao contrário da covid-19 – provocaram mais mortes entre os ricos. “Das ‘dez pragas do Egito’ [narrativa bíblica], três são enfermidades. E os mais atingidos são os de classe superior, os mais abastados, que moravam mais perto do rio Nilo. Quem vivia mais afastado teve seus filhos e seus animais poupados”, lembra Kibuuka.

Olhar para a história das epidemias, segundo o professor da Ufes, ajudaria a evitar a repetição de erros do passado. Certas superstições e estigmas difundidos durante a atual pandemia, por exemplo, encontram correspondência na Antiguidade: “Se hoje alguns falam em ‘vírus chinês’, na Bíblia hebraica aparece a ideia de uma ‘enfermidade judaica’. A ideia equivocada de que pessoas ‘etnicamente superiores’ estariam imunes a determinadas doenças também é muito antiga”.

O negacionismo em relação a epidemias também aparece no Corpus Hippocraticum, compilação de tratados médicos dos séculos 3 e 4 a.C. Em um dos textos, Hipócrates, o pai da Medicina, observa que jovens da ilha de Tassos, na Grécia, se recusavam a tomar medidas de prevenção e tratamento da caxumba – até que a situação se agravou e os obrigou a tomar providências.

“Mesmo que os conhecimentos em medicina fossem empíricos, talvez a grande diferença na época é que eles eram mais pragmáticos e tendiam a ouvir os especialistas, tanto na Antiguidade ocidental quanto na oriental”, compara o historiador. “Nisso, nós estamos piores do que na Antiguidade. Hoje, os especialistas são deixados de lado por pessoas que têm conhecimento rasteiro e negam o óbvio, dizendo que o vírus simplesmente não existe ou que foi feito em laboratório”.

Nós estamos piores do que na Antiguidade. Hoje, os especialistas são deixados de lado por pessoas que têm conhecimento rasteiro e negam o óbvio.

Mais de 6,2 milhões de pessoas já foram identificadas com o novo coronavírus nos cinco continentes. A doença causou 373 mil mortes até o momento, e metade delas ocorreram nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Itália e no Brasil.

Edição: Rodrigo Chagas


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