No início de maio, a Polícia Federal (PF) apreendeu o celular do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), o coronel Mauro Cid. Além de mensagens trocadas entre oficiais do Exército e reservistas sobre o papel das Forças Armadas contra o resultado das eleições presidenciais do ano passado, foi encontrada a minuta de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que poderia embasar um golpe de Estado.
O celular foi apreendido durante a Operação Venire, que investiga grupo suspeito de fraudar carteiras de vacinação contra a covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde, incluindo dados de imunização de Bolsonaro e familiares. Mauro Cid está preso por supostamente articular o esquema.
De acordo com a PF, foram inseridos dois registros de vacinação contra a covid-19 na carteira de Bolsonaro, o primeiro em 13 de agosto e o segundo em 14 de outubro de 2022. Os registros foram feitos retroativamente, ou seja, inseridos em 21 de dezembro do ano passado, poucos dias antes de Bolsonaro viajar aos Estados Unidos.
As investigações, no entanto, levaram a PF a encontrar as mensagens e os documentos de cunho golpista.
Além dessas duas investigações, Mauro Cid também é alvo de um inquérito que apura o caso das joias da Arábia Saudita, presentes à presidência da República, mas que foram trazidas ilegalmente ao Brasil e incorporadas ao acervo pessoal de Bolsonaro durante o seu mandato. Segundo a PF, Cid tentou reaver as joias que foram apreendidas pela Receita Federal, no Aeroporto Internacional de Brasília.
Confira o conteúdo golpista encontrado no celular de Mauro Cid:
Conversas sobre o golpe
Nas mensagens encontradas, um dos interlocutores de Mauro Cid foi o coronel do Exército Jean Lawand Junior. “Cidão, pelo amor de Deus, cara. Ele [Bolsonaro] dê a ordem que o povo tá com ele, cara. Se os caras não cumprir, o problema é deles. Acaba o Exército Brasileiro se esses cara não cumprir a ordem do, do Comandante Supremo. Como é que eu vou aceitar uma ordem de um General, que não recebeu, que não aceitou a ordem do Comandante. Pelo amor de Deus, Cidão. Pelo amor de Deus, faz alguma coisa, cara. Convence ele a fazer”, disse Lawand em um dos áudios enviados a Mauro Cid, em 30 de novembro de 2022, segundo transcrição da PF.
Em outro momento, Lawand afirma: “Meu amigo, na saída do QG encontro bom o ROSTY, SCmt COTER. Foi uma conversa longa, mas para resumir, se o EB [Exército Brasileiro] receber a ordem, cumpre prontamente. De moto próprio o EB nada vai fazer porque será visto como golpe. Então, está nas mãos do PR [presidente]”.
Jean Lawand Junior / Reprodução/ Exercito Brasileiro
De acordo com apuração da PF, o nome ROSTY pode estar relacionado ao General de Divisão, Subcomandante de Operações Terrestres do Comando de Operações Terrestres do Exército Brasileiro, Edson Skora Rosty.
Algumas semanas antes, em 13 de novembro de 2022, o sargento do Exército Luis Marcos Dos Reis, que esteve nos atos golpistas em 8 de janeiro, afirmou que “é mais fácil” ele ajudar as manifestações de bolsonaristas que estavam ocorrendo em frente ao quartel-general do Exército de Goiânia “do que tirar [os caras] de lá”.
Dos Reis também compartilhou, no dia dos atos golpistas, “diversas filmagens das manifestações na esplanada dos ministérios juntamente com sua esposa e um de seus filhos. Além de realizar as filmagens, ele realizou o compartilhamento com alguns contatos de seu telefone. A seguir serão expostas algumas imagens extraídas dos vídeos gravados e as conversas em que esse conteúdo foi compartilhado”, afirma a PF em laudo.
Grupo com militares da ativa
Em um grupo no aplicativo WhatsApp formado por militares da ativa, fala-se em ruptura institucional, necessidade de ação por parte das Forças Armadas, “globalismo socialista” e guerra.
“Uma ação por parte do PR [presidente] e FA [Forças Armadas], que espero que ocorra nos próximos dias”, afirma uma pessoa identificada como Gian, em 27 de novembro do ano passado. “Sem volta, ou o PR/FA fazem algo, ou seremos arrastados para o problema, o que é pior.”
Em outro momento, outra pessoa questiona se terá “careca sendo arrastado por blindado em Brasília”, o que a PF acredita fazer referência ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes.
Um interlocutor identificado como Marcio Resende responde: “Se o Bolsonaro acionar o 142, não haverá general que segure as tropas. Ou participa ou pede pra sair!!!”. Também diz que se os militares não têm “coragem de enfrentar o cabeça de oco e uma fraude eleitoral, vamos enfrentar quem???”.
Tese de Ives Gandra
Também foi encontrada uma tese sobre a utilização do artigo 142 da Constituição, que permitiria uma intervenção das Forças Armadas em caso de conflito entre os Três Poderes, escrita pelo advogado e professor emérito da Universidade Mackenzie Ives Gandra Martins.
O conteúdo estava em um e-mail enviado ao major do Exército Fabiano da Silva Carvalho, que perguntou a Gandra Martins em quais situações as Forças Armadas poderiam ser acionadas. Em resposta, o advogado afirma que o acionamento “pode ocorrer em situação de normalidade se no conflito entre Poderes, um deles apelar para as Forças Armadas, em não havendo outra solução”.
Ives Gandra Martins / José Roberto Couto/CNC
Martins ainda cita o golpe militar de 1964 como exemplo. “A implantação dos governos militares em 1964 foi uma imposição popular por força dos desmandos do Governo Jango e do desrespeito constitucional aos princípios que deveria obedecer, inclusive na hierarquia militar com indicação de oficial general de três estrelas para Ministro. Toda a imprensa foi favorável ao movimento, conforme demonstro em minha avaliação escrita para o TRE paulista, que lhe repasso”, afirma o advogado no e-mail.
Documento que cita a Constituição
A PF também encontrou uma espécie de backup no qual Cid reuniu as possibilidades legais para realizar um golpe supostamente dentro da constitucionalidade. Entre os documentos, um deles diz que um juiz “não pode aplicar a lei de forma injusta, ou seja, contra a Constituição, em especial de modo contrário ao Princípio da Moralidade Institucional […] Do contrário, teremos uma atuação ilegítima”.
Cid também enumerou as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgadas como parte de um “ativismo judicial”, que poderiam justificar um golpe.
“Devemos considerar que a legalidade nem sempre é suficiente: por vezes a norma jurídica ou a decisão judicial são legais, mas ilegítimas por se revelarem injustas na prática. Isto ocorre, quase sempre, em razão da falta de constitucionalidade, notadamente pela ausência de zelo à moralidade institucional na conformação com o ato praticado”, revela um trecho.
“Insta dizer que o Princípio da “Moralidade Institucional” presume a probidade de todo e qualquer agente público, ou seja, sua honestidade e lisura. Ele proíbe o desvio de finalidade, enquanto arbitrariedade supralegal. Enfim, não permite que leis e/ou decisões injustas sejam legitimadas por atos autoritários e afastados do marco constitucional.”
Ao final, o texto sugere: “Diante de todo o exposto e para assegurar a necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas, com base em disposições expressas da Constituição Federal de 1988, declaro o Estado de Sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem”.
Minuta de um decreto golpista
A Polícia Federal (PF) também encontrou a minuta de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que poderia embasar um golpe de Estado. A GLO é um instrumento jurídico que permite ao presidente da República convocar as Forças Armadas em momentos de perturbação da ordem pública.
No despacho que autorizou o depoimento de Cid à PF em relação a este caso, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes declara que o material aborda “a possibilidade de empregar as Forças Armadas excepcionalmente, com o objetivo de assegurar o funcionamento autônomo e harmônico dos poderes da União”.
De acordo com as investigações, os documentos foram encontrados em uma conversa de Cid com o sargento Luís Marcos dos Reis. Em outras mensagens, os dois conversam sobre persuadir autoridades do Exército e a colaborarem com a GLO.
Ambos foram presos durante a operação que apura fraudes em cartões de vacinação, como o do ex-presidente Jair Bolsonaro. Foi a partir desta operação que a PF passou a investigar a suposta participação dos envolvidos em uma preparação para um golpe de Estado.
A PF desconfia que o plano de um golpe envolvia a edição do decreto da GLO e depois a implementação da minuta encontrada na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. O documento poderia autorizar Bolsonaro a declarar estado de defesa nas sedes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para reverter o resultado da eleição presidencial do ano passado.
Gabriela Cid e Ticiana Villas Bôas
A Polícia Federal também apreendeu o celular de Gabriela Cid, esposa de Mauro Cid, no qual contém conversas de cunho golpista com a filha do general Eduardo Villas Bôas, Ticiana Haas Villas Bôas.
Ambas defenderam a realização de uma nova eleição, com voto impresso, e a queda do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes.
Em determinado momento, Gabriela afirma: “Temos q exigir novas eleições c voto impresso. Nada de intervenção federal. (…) Estamos diante de um momento tenso onde temos q pressionar o congresso. Agora!!!!!”. Ticiana, então, responde: “Ou isso, ou a queda do Moraes [ministro Alexandre de Moraes]”.
Ticiana também afirma que o Exército “tinha que mandar alguém falar com os cabeças dos caminhoneiros e dizer quais tem que ser a reivindicação deles”. “Sim. Estão falando em intervenção federal. Mas tem q ser impeachment, novas eleições com voto impresso”, respondeu Gabriela.
Em outro momento, Ticiana e Gabriela falam sobre orientar os caminhoneiros em direção a um golpe de Estado. “Os caminhoneiros tem q ser orientados”, disse Gabriela. “Alguém tinha que falar com eles”, respondeu Ticiana. “Sim! Foi o que pediu o presidente [Bolsonaro]. E acho que todos que podem tem q vir pra Bsb [Brasília]. Invadir Brasília como no 7 de setembro e dessa vez o presidente com essa força agirá”, afirmou a mulher de Mauro Cid.
Edição: Rodrigo Durão Coelho