Opinião | Diante dos desmontes, é a periferia que segue no front

Diário Carioca

No Brasil de 2020, nos deparamos com a chegada da pandemia e do que hoje chamamos de um “novo normal”. O vírus é novo, mas os desafios para vencê-lo são antigos. O público primário da doença é a elite do país e a periferia, dessa vez, estava bem, ficando na margem.

No DF, esta semana faz cem dias desde o primeiro caso, um casal do Lago Sul, área “nobre”, recém-chegados da Europa. Em seguida, diversos membros da comitiva do presidente que foram aos EUA, também testaram positivo. Estes já sinalizaram de cara os primeiros problemas. O esposo da mulher internada, seguiu desfilando pela cidade, mesmo diante dos riscos. O presidente e sua comitiva – que chegou a marcar 22 contaminados – seguiram minimizando o fato.

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O governo local se viu numa missão: decretar quarentena, que foi de 5 para 15 e, depois, 30 dias. Com os casos se concentrando nas áreas nobres, a preocupação, o debate sobre leitos e o sobrecarregamento do sistema de saúde logo vieram à tona. Sem vacina, nem medicamento cientificamente comprovado capaz de conter a doença, a palavra de ordem que se seguiu foi: fique em casa.

Enquanto isso, na periferia, os movimentos já acendiam o sinal de alerta de que se chegasse aqui seria um desastre, uma vez que há, historicamente, problemas estruturais nas nossas cidades. Não é de hoje que pedimos saneamento básico e reclamamos do acesso à saúde. Se falta o mínimo, como ficar em casa? Essa é a melhor orientação, juntamente com o lavar as mãos, usar máscaras e evitar aglomeração. Mas como a periferia pode seguir todas estas recomendações?

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Em um primeiro momento, pode se imaginar que é algo fácil e que todos deveriam fazer. Mas dizer isso sem compreender as relações sociais e o histórico de desvantagem que nossa população vivencia é um equívoco. Somos um país desigual e que nos últimos quatro anos agravou ainda mais esta desigualdade com uma agenda neoliberal que hoje dificulta e muito o enfrentamento da pandemia.

Vamos dar uma pausa no “fique em casa” e vamos falar sobre o congelamento do teto de gastos. Só na saúde foram retirados R$ 19 bilhões que hoje fazem falta para ampliar os leitos e a rede de atenção à saúde. E que tal falar sobre a lei da terceirização e da “reforma trabalhista” que, ao fim e ao cabo, precarizou o trabalho e deixou muitos desassistidos. Por que não falar da proposta de acabar com Benefício de Prestação Continuada (BPC) na reforma da Previdência, que se não fosse barrada, hoje deixaria milhares de idosos desassistidos.

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Pois bem, como ficar em casa se a maioria da população desempregada vive de bicos e na informalidade. Os mesmos que só têm dinheiro se saírem de casa para correr atrás. Estes se viram em um dilema: ficar em casa e sem condições de se manter, ou se arriscar e fazer o seu. Pois é, já sabem o que rolou, né?

Não podemos olhar as medidas apenas com base na nossa condição, no privilégio de poder ficar em casa. É praticamente impossível seguir uma orientação do Estado sendo que o mesmo não tem dado condições para que os mais vulneráveis possam sobreviver em meio à pandemia. Não dá para culpabilizar o indivíduo sem uma leitura histórica e social e que, diante desta problemática, ou vamos para a rua garantir o pão de cada dia ou vamos.

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Além dos que não tiveram suporte e estão na informalidade, uma outra parte da periferia segue na linha de frente dos chamados serviços essenciais. São os motoristas de ônibus, cobradores, atendentes de mercados e farmácias. Estão na limpeza urbana e também fazem parte das equipes de saúde.

Essa é a real.

Num momento tão delicado, deixamos novamente os mais vulneráveis desassistidos, à própria sorte e com um mix de desinformação, inclusive por parte de quem deveria passar segurança. O auxílio emergencial, se dependesse do governo, só seria de R$ 200 e os R$ 600 conquistados com muita luta ainda nem chegou para uma parcela da população.

Lembra da área nobre? Pois é, onde se teve uma “pronta” resposta, a taxa de letalidade diminuiu e começaram a relaxar as medidas e reabrir o comércio. Enquanto isso, nos bairros mais pobres, aumentou a quantidade de contaminados e mortos. Uma clara demonstração de que não ligam para a vida destes, que em nenhum momento puderam ficar em segurança seguindo a tão falada orientação: “fique em casa!”.

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Por fim, lembra da relação desigual e do desmonte citado mais acima? É nesse cenário que seguimos resistindo, no front e tendo sempre a burocracia como adversária para dificultar ainda mais tudo isso.

Desejamos que tudo isso passe logo, mas que possamos sair fortes e conscientes, que só com participação popular, com a solidariedade comunitária, com comitê de bairros, com fortalecimento da economia local e da agricultura familiar, com gestão democrática e orçamento participativo, mudamos um pouco esse rumo.

*Max Maciel (@maxmacieldf) é pedagogo, especialista em Gestão de Políticas Públicas e consultor da Rede Urbana de Ações Sócioculturais (RUAS).

Edição: Vivian Fernandes


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