Quase 40% dos casos de codiv-19 em Buenos Aires se concentram nas favelas da capital

Diário Carioca

No dia 17 de maio, a morte de Ramona Medina escancarou a falta de assistência das zonas mais pobres do da Argentina diante da pandemia do novo coronavírus, especialmente em Buenos Aires, zona de maior foco de contagio no país. Militante na organização La Poderosa, Ramona denunciava constantemente a falta de água em sua comunidade, a Villa 31, na capital, governada por Horacio Rodríguez Larreta (Cambiemos), alinhado ao ex-presidente Mauricio Macri.

“Não podemos viver nessas condições”, dizia Ramona no último vídeo que gravou denunciando a falta de água. “Há um vírus que está consumindo novas vidas todos os dias. Nos dizem para lavar as mãos, mas não temos água, o mais básico que precisamos para higienizar-nos.” Em sua denúncia, também questionava ao vice-chefe de governo Diego Santilli, do Proposta Republicana, que, à época, afirmava à mídia que a comunidade estava atendida.

O caso de Ramona ganhou repercussão por ilustrar a situação permanente das favelas, que só se agravaram com a pandemia. As favelas, entre as quais está a Villa 31, já representam 40% dos casos positivos para coronavírus na capital.

Ao subirem exponencialmente os casos de covid-19 nas favelas, o Dispositivo Estratégico de Teste para Coronavirus no Território da Argentina (DETeCTAr) chegou às duas comunidades mais afetadas na capital, para identificar pessoas com sintomas da doença. De acordo com o governo, os bairros populares e favelas de Buenos Aires concentram 13,8% dos casos de coronavírus do país. Na Villa 31, atualmente 58% dos moradores já testaram positivo, seguido da Villa 1-11-14, com 45%.

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Tarde demais

Lilian Andrade, moradora da Villa 31 e militante da organização La Poderosa, atenta para o fato de que o Estado chegou tarde com o dispositivo para identificar pessoas febris nas comunidades. Além disso, a forma como os testes têm sido realizados também expõem a população ao risco de contágio, dadas as horas de espera para realizar os exames e aguardar pelos resultados.

“O dispositivo chegou muito depois de nossos pedidos e do primeiro contágio. Ainda hoje, o Detectar é contraproducente. Muitos vizinhos e vizinhas que têm febre são obrigados a ficar na fila por muito tempo, misturando casos positivos e negativos. Depois do exame, ainda esperam por muitas horas”, relata.

“Depois disso, entram no ‘coronabus’, mais uma vez misturando casos positivos e negativos, para serem isoladas em hotéis ou hospitais se são parte do grupo de risco. Ao sair desse espaço comum, depois de muitas horas compartilhando um espaço reduzido, é muito provável que todas sejam positivas.”

Muitos vizinhos e vizinhas que têm febre são obrigados a ficar na fila por muito tempo, misturando casos positivos e negativos.

Precariedade

Médica em um Centro de Saúde de Ação Comunitária (Cesac), na Villa 1-11-14, localizada na capital, Sandra Rocco também vê com preocupação a forma como vem sendo realizado o procedimento de detecção de possíveis contagiados e grupos de risco. “As salas de espera nos hospitais, muitas vezes, não estão bem preparadas para o isolamento. Se for um caso positivo, a pessoa é derivada a hotéis ou hospitais, isolada em um lugar que não conhece, e muitas vezes membros da mesma família são levados a lugares diferentes”, conta Sandra.

“Parte do nosso trabalho no centro de saúde consiste em comunicar-nos com essas pessoas e acompanhar os casos.”

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As comunidades também afirmam que muitos dos hotéis para onde os pacientes são levados para o isolamento estão em condições precárias. Na última semana, um grupo de moradores da Villa 31 denunciou a insalubridade de hotéis, que serviam comida estragada a vizinhos da comunidade que cumprem o isolamento. Na prática, são os próprios moradores que continuam a atender às necessidades mais básicas entre si, por exemplo, levando comida aos vizinhos isolados em hotéis, que não se responsabilizam pelas reclamações.

Somos nós que atendemos a várias situações que o Estado não resolve.

Esse tipo de denúncias gera receio entre as pessoas a realizar o teste. “Muitos vivem em casas pequenas, com muitos familiares”, relata a moradora da Villa 31 Lilian Andrade. Ela ressalta a impossibilidade de cumprir os termos da quarentena quando grande parte dessa população necessita sair para tentar trabalhar diariamente, ou para buscar itens básicos para higienização e alimentação. Para isso, contam, principalmente, com a cooperação entre os próprios vizinhos e organizações que atuam nas comunidades.

“Somos nós que atendemos a várias situações que o Estado não resolve. Distribuímos kits de limpeza entre os moradores, e os que distribuem comida passam muitas horas cozinhando. Desde que começou a pandemia, a demanda nacional dos pontos de distribuição de comida subiu 320%”, afirma.

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Militarização como resposta

A explosão de casos na Villa Azul nas últimas semanas também ganhou espaço na mídia, especialmente pela resposta do governo da província. Forças policiais cercaram os acessos à comunidade, impedindo a saída e entrada no local.

“A militarização das favelas nesta pandemia agrava a violência policial que sofremos nas favelas e bairros populares”, explica Lilian. “O tratamento que dão a moradores da favela não é igual ao que dão a outros cidadãos. Para nós, a resposta para problemáticas estruturais não é militarizar os territórios. Buscamos uma solução de fundo, desde as bases.”

A medida consiste no que se chama de quarentena comunitária, e foi cumprida pelos moradores do bairro. Desde o dia 8 de junho, a Villa Azul entrou em uma nova etapa: o isolamento focalizado como seguimento dos casos positivos, assistência alimentária e flexibilização de saída e entrada na comunidade. O governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof (Frente para a Vitória), foi questionado por movimentos populares pela decisão de responder à pandemia nessas zonas com forças policiais. Daniel Menéndez (Somos), subsecretário do Ministério de Desenvolvimento Social, não poupou críticas à medida que, como descreveu, estaria gerando um “gueto de pobres”.

A Argentina tem sido exemplo por suas medidas antecipadas e eficientes de controle do avanço de contágios do coronavírus e pelo trabalho em conjunto entre governantes de lados opostos do que chamam de “grieta”, a “rachadura” que metaforiza a polarização política que divide a sociedade argentina, basicamente, em dois.

Desde o início dos procedimentos para lidar com a pandemia no país, é comum ver juntos em uma mesa a Larreta, prefeito da capital e macrista – portanto, afim às políticas neoliberais –; o atual governador da província de Buenos Aires, Axel Kiciloff; e o presidente Alberto Fernández, esses dois últimos da coalizão Frente de Todos (junto a vice-presidenta Cristina Kirchner), que voltam com políticas populares para a Argentina após quatro anos de um país golpeado pelo neoliberalismo macrista.

Ainda que os números estejam, aos poucos, sendo controlados também nos bairros populares, o que se discute é a escolha do método de controle nas favelas, especialmente o caso de Villa Azul. Segundo Lilian, isso revela a falta de diálogo do governo com a população. Mayra Mendoza (Frente para a Vitória), prefeita de Quilmes, onde se localiza a Villa Azul, assegura de que o cerco policial foi a melhor decisão para o controle no bairro. “Pode ter sido chocante no começo, mas estamos convencidos de que é a melhor decisão que poderíamos ter tomado, porque estamos cuidado do bairro e seus moradores”, afirmou a prefeita, em entrevista ao Página 12.

O tratamento que dão a moradores da favela não é igual ao que dão a outros cidadãos.

Lilian destaca a diferença de medidas aplicadas nas favelas quando passam por um diálogo com quem tem uma vivência diária nesses territórios. “Nós apresentamos algumas alternativas em conjunto, mas o que o Estado implementa nos territórios são trazidas sem discutir com os moradores. Temos outra perspectiva, e precisamos que as soluções sejam pensadas em conjunto conosco, para debater e ver a melhor maneira de implementá-las. Os casos aumentam a cada dia, e são muitas favelas e bairros populares em todo o país. Nós não queremos chorar mais a nenhum companheiro ou companheira”, conclui.

Edição: Rodrigo Chagas


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