Tribunal Permanente dos Povos do Cerrado é lançado para julgar crime de ecocídio

Diário Carioca

Se nada for feito para frear a devastação e a violação de direitos que ocorre no Cerrado brasileiro – região que comporta 22% do território nacional – o desastre será irreversível.

Com esse apelo, a Campanha em Defesa do Cerrado, composta por 50 organizações sociais, teve a petição feita ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP) aceita para que uma Sessão Especial no Brasil julgue o crime de ecocídio contra indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais do Cerrado. 

O TPP, tribunal internacional de opinião com sede em Roma, foi criado em 1979 como uma forma de apoiar e promover as lutas dos povos em defesa do direito à autodeterminação. Ao longo das suas décadas de existência, o Tribunal realizou 48 sessões públicas sobre situações críticas de repressão massiva ao redor do mundo e, no dia 10 de setembro, deu início ao julgamento sobre o Cerrado brasileiro, que deve durar até o fim de 2022.  

A peça acusatória apresentada pelos movimentos denuncia o Estado brasileiro como responsável, em articulação com Estados estrangeiros e agentes privados nacionais e internacionais, pela prática de ecocídio e genocídio cultural no Cerrado ao longo do último meio século. 

O júri multidisciplinar do Brasil e do exterior é composto por nove pessoas, com nomes tais como a ex-procuradora geral da república Deborah Duprat; o professor da Universidade Rovira i Virgili de Tarragona Antoni Solé; a liderança indígena Sônia Guajajara e a jornalista Eliane Brum.  

Com audiências temáticas que serão transmitidas ao vivo a partir de novembro, o julgamento analisará 15 casos específicos. Para citar alguns dos povos que serão ouvidos, estão os indígenas Guarani e Kaiowá e Kinikinau do Mato Grosso do Sul; representantes do Território Tradicional Retireiro Mato Verdinho do Mato Grosso; as comunidades gerazeiras de Vale das Cancelas de Minas Gerais; bem como as comunidades quilombolas de Cocalinho e Guerreiro do Maranhão.  

Para entender os detalhes desse julgamento, os pormenores do que é definido como ecocídio e genocídio cultural, e o que se espera da sessão brasileira do Tribunal Permanente dos Povos, o Brasil de Fato conversou com Diana Aguiar, assessora da Campanha em Defesa do Cerrado. 

Brasil de Fato: O que é o Tribunal Permanente dos Povos do Cerrado?  

Diana Aguiar: O Tribunal Permanente dos Povos remonta aos chamados Tribunais Russell que foram organizados pelo filósofo Bertrand Russell na década de 1970 sobre a guerra do Vietnã e os crimes de guerra cometidos pelos EUA naquele momento. Tem, desde essa época, realizado diversas sessões internacionais e acompanhado os temas mais importantes do último meio século da humanidade. Porque julgaram crimes muito diversos e puderam  testemunhar as transformações e lutas da era pós colonial, o avanço do neocolonialismo econômico, da globalização.  

A declaração inicial do TPP, que é a Carta de Argel ou Declaração Internacional dos Direitos dos Povos, é de 1976 e fazia referência direta a esse momento histórico onde havia uma prevalência de estados de exceção na América Latina. E ele tem uma inovação porque reconhece os povos como titulares de direito e muitas vezes que os Estados podem cometer crimes contra seus próprios povos.  

Por que convocar uma sessão do Tribunal Permanente dos Povos para o Brasil nesse momento histórico? 

Muitos desses elementos, tão importantes no início do TPP, voltaram a ter predominância com as rupturas democráticas que o Brasil tem vivido nos últimos anos e as violações ao direito de autodeterminação dos povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais. Não somente, mas é a ênfase que estamos querendo dar. O que a gente vê é como o Cerrado e a realidade desses povos têm sido uma expressão especialmente brutal da realidade do Brasil hoje. 

Ao mesmo tempo, a ideia de um tribunal de opinião é que ele é um tribunal não vinculante: independente do sistema de Justiça estatal. Por um lado, isso pode parecer uma fragilidade porque não tem a capacidade de fazer cumprir um veredito. Mas por outro lado, traz coisas muito potentes, porque ele avança muito além do sistema de justiça estabelecido. No momento atual ele acaba sendo um espaço para reivindicar e reafirmar direitos que foram duramente conquistados desde a Constituição de 1988 e que estão sob ataque.  

Antes de entrar propriamente na sessão especial do Tribunal que deve julgar o caso do Cerrado, têm alguns termos que aparecem na denúncia e que seria interessante te escutar a respeito dos seus significados. O que vocês entendem por ecocídio e por genocídio cultural? 

Segundo o estatuto do Tribunal, o ecocídio é o dano grave, a destruição ou a perda de uma ou mais ecossistemas em um território determinado, seja por causas humanas ou por outras causas, cujo impacto provoca uma severa diminuição dos benefícios ambientais de que gozavam os habitantes de tal território.  

Nós dialogamos com essa tipificação e procuramos aplicá-la para o caso do Cerrado. A gente entende o ecocídio em curso no Cerrado, e estou lendo aqui da peça de acusação, como “os históricos e graves danos e a vasta destruição que resultaram da intensa expansão da fronteira agrícola sobre essa imensa região ecológica (cerca de 1 ⁄ 3 do território nacional) ao longo do último meio século”.  

Então dos três pontos que significariam ecocídio para o TPP, dano grave e destruição já estão em curso. Mas o terceiro que é a perda, nossa leitura é que diante do aprofundamento da destruição do Cerrado que está em curso hoje, a gente está na iminência da sua extinção enquanto região ecológica.  

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No momento em que a base material da reprodução social dos modos de vida dos povos do Cerrado é destruída, você tem por consequência a ameaça de genocídio cultural desses povos. Genocídio cultural é uma ideia tão antiga quanto a própria ideia de genocídio. Os ataques sistemáticos para a destruição de um grupo podem se concentrar na destruição do que constitui a identidade cultural do grupo, sem necessariamente visar seu extermínio físico.  

Então a gente está falando de genocídio cultural, mas na verdade a gente podia estar falando basicamente de genocídio. Nós estamos levantando uma leitura mais profunda que foi abandonada no processo de constituição da Convenção Internacional, porque os Estados tinham medo de que, se se consagrasse essa leitura do crime de genocídio, eles poderiam sofrer interferências em sua soberania nacional em razão de que tantos Estados – senão todos – perseguem suas minorias.  

Quais exemplos de situações concretas que estão acontecendo no Cerrado que embasam essa denúncia?  

A gente apresenta 15 casos em oito estados do Cerrado de violações de direitos, sobretudo de posse e propriedade da terra e território e da autodeterminação de povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais. Entendemos que há violação sistemática desses direitos, que são amplamente reconhecidos e protegidos por diversos instrumentos legais nacionais e internacionais. A própria Constituição, mas também a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, entre outras.  

E se você analisa a história do Cerrado no conjunto, mas também a partir das regiões específicas, você vê um padrão comum. De expansão do desmatamento associado à grilagem de terras, conflitos, contaminação por agrotóxicos e outras situações diversas.  

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Quando é a sessão especial do Tribunal que julga esse caso? 

O lançamento foi em 10 de setembro e a partir de agora vamos ter audiências temáticas. Nelas, o júri vai escutar os testemunhos e as evidências dos 15 casos: vão acontecer ao longo dos próximos meses. 

No momento em que há membros de um júri reconhecendo a validade da denúncia e a relação que a gente está fazendo entre ecocídio e genocídio cultural, isso em si já fortalece o próprio processo político de luta por direitos que os povos e comunidades estão fazendo.  

Por outro lado, é uma chance única das comunidades que estão apresentando seus casos de saírem da invisibilidade e serem escutados sobre aquilo que sofrem cotidianamente há tantas décadas. Então tem um papel de abrir espaço de voz e testemunho para que essas comunidades possam contar sua história. O veredito final vai ser um instrumento a mais nessa luta, mas o próprio processo já é um resultado.  

De que forma a sociedade pode acompanhar esse processo? 

Todas as audiências, assim como o lançamento, têm transmissão ao vivo pelo youtube. Para acompanhar a programação, as redes sociais da Campanha: @campanhacerrado tanto no Instagram quanto no Facebook e no Youtube, quanto o site. Ali tem todas as informações.  

Em cada audiência teremos materiais de base que serão apresentados como evidência e vão ser públicos também. O próprio júri emite, ao final das audiências, uma consideração a respeito daquilo que escutaram.  

Então estamos construindo essa que é a fase instrutória do júri, rumo à fase final, que é quando haverá o veredito. 

Já tem uma data para o veredito final? 

Nossa perspectiva é que seja em novembro do ano que vem. Tudo vai depender da pandemia e das possibilidades de aglomeração.  

Levando em conta os motivos que fizeram com que vocês procurassem o Tribunal, o que se espera?  

Entre as comunidades que estão apresentando esses casos há uma grande expectativa em relação ao momento em que vão poder falar para a sociedade brasileira, com ampla transmissão e com a presença desses membros do júri, sobre o que eles têm sofrido.  

Por exemplo, nesse momento a comunidade quilombola de Tanque da Rodagem no Maranhão está acampada na beira de uma estrada, enfrentando jagunços a mando de dois grileiros do Paraná que estão com tratores para desmatar uma área do território da comunidade.

Eles estão nesse processo há mais de dez horas, temos feito muitas ações de busca de visibilidade, e até o momento elas estão basicamente sozinhas, sem a proteção do Estado. Eu estou dando esse exemplo para dizer: não há sossego. Cotidianamente nós recebemos denúncias sobre processos de conflito acirrado em diferentes regiões do Cerrado.  

Então tem também um elemento de aprendizagem coletiva para muitas pessoas que estão preocupadas com questões de justiça ambiental e agrária, mas que muitas vezes não têm noção da gravidade das situações que têm acontecido. 

É a ampliação de visibilidade de lutas específicas mas também do conjunto. Então acaba sendo um processo de articulação política entre comunidades em todos os estados do Cerrado, que não necessariamente se viam como partes de um processo coletivo e que estão entre o Mato Grosso do Sul e o Maranhão.  

Edição: Anelize Moreira


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