O que alguns, e talvez o próprio Putin, imaginavam ser um jogo rápido, está se prolongando. Passaram-se 50 dias desde que a Rússia invadiu, em três frentes diferentes (Norte, Sul e Leste), a Ucrânia e não há nenhuma indicação de disposição de Moscou em aceitar um cessar-fogo, ou de uma rendição por parte de Kiev.
Pelo contrário, Vladimir Putin anunciou em 12 de abril que as negociações não estavam levando a lugar nenhum e que a Rússia iria continuar com suas ações militares até atingir seu objetivo. O problema é que não temos como saber qual é o seu objetivo. Pelo jeito, é um conceito flexível que pode ser adaptado de acordo com as reais condições.
Em janeiro, quando se tratava ainda somente de uma enorme demonstração de força, Putin exigia garantias formais da neutralidade da Ucrânia, retirada de tropas e equipamentos militares da OTAN de todos os países que entraram na organização depois da queda da União Soviética e também garantias com relação à não adesão de mais países da região à Organização.
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Logo depois da invasão, em 24 de fevereiro, juntou-se a isso a exigência de troca de regime em Kiev. Putin até fez um apelo aos militares ucranianos para destituir Zelensky para poder chegar a um acordo rápido.
Por enquanto, a Rússia conseguiu provocar exatamente o contrário de tudo isso: Zelensky, que na véspera da guerra estava muito fragilizado interna e externamente, está mais forte do que nunca; a OTAN está em um processo de rejuvenescimento, não só por que Washington quer, mas sobretudo por causa do impacto da guerra na opinião pública europeia; aumentos inéditos dos gastos militares por parte de países como Alemanha que de cara já aprovou US$ 100 bilhões de gastos extras; e uma discussão política na Suécia e Finlândia para abandonar a consolidada política de neutralidade e aderir à OTAN como membro plenos.
O caso da Finlândia, sobretudo, é emblemático, porque a “finlandização” da Ucrânia era considerado um modelo para chegar a um acordo nos termos de Moscou.
Mas agora, na própria Finlândia, no giro de 50 dias, o apoio de adesão à OTAN aumentou de um patamar de 20-25% para cerca de ⅔, o que obrigou o governo a colocar esse tema em pauta.
Essa semana, inclusive, o governo finlandês lançou um documento sobre o futuro da sua estratégia de segurança, na qual constata que o ambiente mudou radicalmente e elenca os prós e contras de uma adesão. O parlamento deve tomar uma decisão nas próximas semanas. Ou seja, muito vai depender do desenrolar da guerra. Se a Finlândia entrar, a fronteira direta da OTAN com a Rússia vai dobrar para 2.600km.
Não obstante tudo isso, Moscou insiste que tudo está indo conforme os planos. De fato, não há como contestar porque, como já mencionado, não temos como conhecer esses planos. Observa-se porém, uma reorientação para algo bem mais factível: o controle total da região de Donbass, composto por duas províncias rebeldes (Donetsk e Lugansk), que se autodeclararam independentes em 2014 e ganharam reconhecimento de Moscou na véspera da guerra.
Com isso, as tropas russas colocariam um fim ao conflito armado que estava se alastrando desde 2014 e contaria, provavelmente, com o apoio da grande maioria da população local. Putin tem pressa para alcançar uma indiscutível vitória, porque estamos chegando perto de 9 de maio, o Dia da Vitória, que marca a capitulação da Alemanha nazista para a União Soviética em 1945. Essa data é comemorada anualmente com uma grande parada militar na Praça Vermelha.
E de outro lado, em particular nos EUA, o governo Biden, após uma inicial inércia, entendeu rapidamente as oportunidades internas e externas que a guerra poderia trazer. Internamente, porque a máquina da propaganda da guerra fria antirussa foi rapidamente revigorada e Biden entende que uma posição firme e agressiva, pode lhe ajudar a compensar a queda de popularidade interna, com vista às eleições para o Congresso em novembro, nas quais ele corre o sério risco de perder a maioria.
E, externamente, porque a guerra possibilitou returbinar a OTAN sob liderança dos EUA, o que agrada também ao poderoso complexo militar-industrial-acadêmico. As empresas desse setor têm suas ações em alta. O mesmo vale, aliás, para as ações das empresas petrolíferas, diante da perspectiva de aumentar a exportação de gás liquefeito para a Europa.
Não surpreende, portanto, que os EUA e seu fiel escudo, Reino Unido, façam de tudo para jogar mais lenha na fogueira e prolongar a guerra. Agora, porque essa guerra se tornou notícia diária em comparação a outras em curso, que não ganham nenhuma atenção?
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Alguns dias atrás, por intermediação das Nações Unidas, se alcançou um cessar-fogo na guerra do Iêmen, que se arrasta há sete anos, já custou a vida de quase 400 mil pessoas e causou uma das maiores crises humanitárias. A Arábia Saudita atua na guerra com armas compradas no ocidente, em particular dos EUA e do Reino Unido e, no início da guerra, até da Alemanha. Enquanto o outro lado é liderado pelas forças do povo Houthi, com suporte do Irã.
Até o cessar fogo teve pouca repercussão. Há muitos motivos que explicam isso, mas um deles é que a guerra na Ucrânia envolve diretamente a segunda maior potência nuclear do mundo e indiretamente a maior aliança militar do planeta. Além disso, há um aparato midiático ocidental que considera guerras em países pobres como parte da vida cotidiana.
Mas há um outro motivo, que é o impacto da guerra sobre a vida de bilhões de pessoas. E a cada dia que passa, isso aumenta. O mundo estava saindo da covid-19, com perspectiva de crescimento e um ciclo de políticas fiscais (aumento de gasto público) e monetárias (aumento de liquidez), o que já estava provocando uma pressão inflacionária, embora ainda controlada.
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A própria guerra voltou a desestruturar várias cadeias produtivas globais que estavam em processo de recuperação, com a perspectiva de fim da pandemia. Mas o que turbinou o impacto foram as várias rodadas de sanções coordenadas pelo ocidente e alguns de seus aliados asiáticos (Japão, Coréia do Sul, Singapura). Sobretudo no caso dos países europeus, que já estão na quinta rodada de sanções contra a Rússia, e devem estar preparando a sexta, trata-se de um ato de solidariedade hipócrita e irresponsável.
Os governos se sentem pressionados pela opinião pública para “fazer mais”. E, a essa altura, Zelensky se transformou no mais popular político na Europa. As cobranças diárias feitas por ele, por exemplo, nos discursos nos parlamentos dos diversos países, dialogam em uma linguagem emocional com a população.
Mas os governos europeus, e o próprio Putin, têm duas coisas muito claras: primeiro, não haverá tropas da OTAN diretamente na Ucrânia, pelo risco de uma escalada nuclear. Segundo, que as sanções não podem incluir petróleo e gás, porque isso terá o mesmo efeito de uma destruição mútua assegurada.
Diariamente os países da União Europeia transferem para a Rússia, em média US$ 436 milhões para gás, US$ 500 milhões para petróleo e US$ 16 milhões para carvão. Ou seja, US$ 1 bilhão por dia. E de outro lado, a Rússia depende - cerca da metade de seu orçamento - desses recursos. Impossível, para ambos os lados, mudar isso a curto prazo.
Nesse sentido, as sanções são hipócritas. Mesmo o anúncio de uma sanção à importação de carvão da Rússia não é o que foi anunciado. Logo depois do anúncio, o “total” se tornou “parcial” e o ‘imediato” se tornou “a partir de agosto”. E isso, no caso do carvão, que é o produto que menos impacto causará às finanças russas e que, em tese, é o mais fácil de achar substitutos, inclusive reativando minas de carvão na própria União Europeia.
O problema é que, a essa altura, as sanções que não atingem seu objetivo declarado (forçar a Rússia a abandonar a guerra), têm efeitos colaterais cada dia mais desastrosos. O FMI (Fundo Monetário Internacional) acaba de anunciar a revisão, para baixo, da previsão de crescimento econômico para 143 países.
A pressão sobre o fornecimento de petróleo e alimentos é sentido em praticamente todos os cantos do planeta, gerando pobreza e sofrimento entre milhões de pessoas. E isso agrava conflitos sociais existentes, como o caso da Sri Lanka, talvez o primeiro país onde o aumento do preço dos combustíveis ligado à guerra na Ucrânia provocou uma onda de protestos. E mesmo no Peru, o insumo é um fator que agravou a situação. É de se esperar que isso vá se repetir em vários países.
E, paradoxalmente, a inflação impacta também diretamente nos países europeus. As eleições na França são um exemplo disso. A candidata da extrema direita, Marine Le Pen, que disputará o segundo turno em 24 de abril com Emmanuel Macron, está focando sua campanha no poder de compra do trabalhador francês.
Embora exista nestes países um apoio para a condenação à invasão russa, não há disposição para pagar o pato. Ainda mais porque, nesse processo, os detentores de capitais sabem se defender contra as pressões inflacionárias e até aproveitar da situação, enquanto a conta é paga pelos trabalhadores.
Assim, a popularidade dos mandatários nos países ocidentais tende a cair, enquanto a de Putin aumenta, porque este sim tem um discurso nacionalista e ideológico que faz com que, pelo menos por enquanto, os sacrifícios que a população tem que aguentar sejam entendidos como parte de sua contribuição à defesa da pátria contra o que é apresentado como um cerco da OTAN.
Da mesma forma, no Sul Global, surgiu uma forte oposição não só às sanções, mas à forma com a qual o Ocidente exige alinhamento automático, e aproveita da guerra para fortalecer seu comando da economia e da política global. O governo indiano, por exemplo, continua resistindo, até porque sua relação com a Rússia é histórica e importante para sua estratégia de segurança, tendo duas potências nucleares na sua fronteira (Paquistão e China).
Quando cobrado pelos EUA a respeito do aumento da compra de petróleo da Rússia (com desconto), seu ministro de assuntos externos, Subramanyan Jaishankar, respondeu que o que a Índia compra de petróleo da Rússia em um mês é menos do que a UE em uma tarde.
A ameaça, sobretudo dos EUA, de impor “sanções secundárias” a países que atuam para enfraquecer as sanções contra a Rússia, claramente não está funcionando. O Ocidente também não está conseguindo enquadrar os países da OPEP, em particular os da península arábica, que teriam condições para aumentar sua produção a curto prazo, criar alternativas ao petróleo russo e aliviar os preços.
Lembrando que a Rússia de Putin, diferente da época da União Soviética, jogava junto com a OPEP na fórmula OPEC+. Os Emirados Árabes Unidos, inclusive, chegaram a se abster da resolução, patrocinada pelo Ocidente, de condenação da Rússia na Assembleia Geral da ONU. Enquanto a Arábia Saudita voltou ameaçar aceitar Renhembi pelo fornecimento do petróleo ao seu maior mercado, a China.
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O filme continua, e não sabemos como e quando vai terminar. Se Putin queria dividir o Ocidente, enfraquecer a OTAN e derrubar Zelensky, parece que ele perdeu a aposta. Mas se o objetivo era enfraquecer o poder do Ocidente sobre o Sul Global, imaginando um mundo pós-guerra, nas suas palavras “mais multipolar”, a conclusão pode talvez ser outra. Em ambos os casos, o custo social é alto e recai sobre as populações mais pobres, para variar. Também não há como prever o impacto de tudo isso na dinâmica política interna russa a médio prazo.
No que diz respeito a China, esta tende a ganhar em todos os cenários. Se a Rússia sair mal do conflito, e totalmente isolada do Ocidente, ela tenderá a se aproximar mais ainda da China, em uma situação de negociação de condições menos favoráveis. No extremo a Rússia se tornaria um “estado cliente da China”. E se a Rússia conseguir se sair bem, isso reforça o campo não-ocidental, da qual a China é o maior e mais promissor expoente.
Por enquanto, os mais de 7 milhões de refugiados internos e os quase 5 milhões de ucranianos que deixaram o país, na grande maioria mulheres e crianças, têm outas preocupações.
*Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil
Edição: José Eduardo Bernardes
Uma guerra com desdobramentos cada dia mais complexos
Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca