Artigo | Comunidade do Horto (RJ) tem novas notificações em processo de reintegração

Diário Carioca

Era uma vez uma comunidade brasileira que nasceu à época ainda da escravidão, como rota de quilombos na região. Com a vinda da corte portuguesa para o Brasil para fugir da sanha europeia de Napoleão Bonaparte, o rei de Portugal decidiu, então, criar ali nas cercanias um parque e para isso se utilizou a mão-de-obra escravizada que por ali se organizou em senzala.

Em 1822, o parque foi aberto à visitação pública e os que o construíram ali seguiram residindo e trabalhando na sua manutenção e funcionamento.

Em 1890 (dois anos após a abolição), os residentes na comunidade agora legalmente libertos ali continuaram – assim como seus descendentes que ali nasceram e se criaram – agora como operários de uma fábrica que em 1920 ali se instalou.

A empresa não só lhes deu a permissão para ali morar como incentivou a construção de suas moradias. Claro que interessava à empresa a proximidade da moradia com o local de trabalho. Até aí, nada diferente com o que ocorre até hoje.

Em 1950, o próprio parque contrata aqueles trabalhadores que vivem no mesmo local agora conhecido como “vila operária” permitindo que continuem ali residindo perto do trabalho e assim se seguiram várias gerações naquela comunidade como também várias atividades empresariais e estatais.  No mesmo período o próprio presidente da República fundou uma escola pública para atender aos moradores e seus filhos.

A partir de 1980, com a criação de um instituto ligado ao parque, este último expande seu território em direção à comunidade já centenária e começam as tentativas de expulsar as famílias de seus lares,  criminalizando a comunidade com a alcunha de favela e com a hipotética defesa do meio ambiente. 

Se hoje algumas casas do caxinguelê estão ‘dentro do parque’ foi porque o Instituto avançou e os incorporou dentro de seus novos limites. De uma hora para outra os moradores tradicionais tiveram suas casas incorporadas dentro do parque.

Nos anos de 1990, se inicia uma gentrificação e no entorno um condomínio de luxo, instalado ilegalmente e que não é incomodado, assim como poderosa empresa de comunicação. As cerca de 600 moradias vão enfrentar 236 ações do referido instituto para expulsar somente os de baixa renda, claro.

Assim é que em 2005 em uma tentativa de reintegração com força policial o resultado apresentado são cinco feridos e um morador morto. Em 2014, nova tentativa com três feridos. 

Com a crescente valorização do território fica muito claro que de trata de mais uma tentativa de “higienização” local contando para isso com os meios de comunicação criminalizando as pessoas como “perigosas” para abrir caminho à especulação imobiliária. Nenhuma novidade, infelizmente.

Aglomerar

A partir daqui a história dá um salto no tempo e chegamos aos tristes tempos da pandemia que assola o país. O surreal vai continuar, agora com o atual poder imperial: o Judiciário.

Em 2021, o país é o epicentro de uma pandemia que assola o mundo inteiro.

As determinações racionais são manter o isolamento social, somente circular por motivos essenciais, somente atividades essenciais funcionando, distanciamento social se necessário sair e uso de máscaras e EPI’s nas ruas. Repetidas à exaustão, é de domínio público as referidas recomendações.

No ambiente jurisdicional a determinação é manter o trabalho remoto ao menos até setembro quando de nova avaliação. Depreende-se daí que os órgãos estão seguindo as medidas de proteção ao menos para seus servidores internos que permanecerão em sistema de rodízio e/ou trabalho remoto.  Não é para todos, infelizmente. 

No final do mês de junho, a Justiça determina que os cuidados sejam seletivos: 28 oficiais de justiça,14 agentes de segurança, dezenas de policiais militares e federais além de centenas de moradores estão excluídos da proteção em virtude da determinação de cumprimento de 180 mandados a cerca de 600 famílias para desocupação daquela área do início da matéria. Aquela comunidade da rota de quilombos. 

Os processos já duram cerca de 40 anos – e a comunidade há séculos –  e não se antevê qualquer urgência que justifique a exposição de centenas de pessoas aglomeradas, exaltadas, assustadas, enfim,  em qualquer situação que não seja de emergência. 

Uma operação deste porte, em plena pandemia e sem um mínimo de razoabilidade, nem é preciso se adentrar ao mérito da questão, somente à primeira parte deste texto, para que se comprove a irresponsabilidade do poder público no pouco caso e desdém com que trata a vida das pessoas.

Não somente dos oficiais que cumprem suas ordens e o aparato de agentes  necessário como também das milhares de pessoas que ali vivem e que como se sabe há séculos sofrem historicamente com a opressão que esse mesmo poder lhe destina. Falta humanidade e razoabilidade ao judiciário. Lamentável.

O resultado destas malfadadas diligências é a inacreditável exposição da vida de tantas pessoas para ao fim se obter 17 mandados positivos dos 180. Dá para acreditar que isso é anunciado como “um sucesso da administração”?

*Coordenadora do Capítulo Brasil do Comitê Internacional Paz, Justiça e Dignidade aos Povos.

Edição: Mariana Pitasse


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