Às vésperas de completar 31 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considerado um marco no Brasil para a proteção da integridade da infância e da juventude, vem sendo constantemente violado nos últimos anos pelo Estado.
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Nas últimas semanas, vieram à tona denúncias de abusos sexuais de meninas por parte de agentes do Centro de Socioeducação Professor Antônio Carlos Gomes da Costa, unidade do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), no Rio de Janeiro. Segundo relatos das jovens internadas, pelo menos duas delas engravidaram de agentes que deveriam protegê-las.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o agente socioeducativo Sidney Teles, que esteve à frente do Degase em 2002 e integrou durante 10 anos a equipe de Direitos Humanos do deputado Marcelo Freixo (PSB) na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), comentou as transformações pelas quais vêm passando esse sistema no estado do Rio.
Teles conta que o Degase foi criado e pensado pelo então governador Leonel Brizola e pelo seu secretário de Educação, professor Darcy Ribeiro, sob o viés da educação. Ele lamenta que hoje o governo estadual tenha distorcido o real sentido das unidades do Degase. “De uma proposta totalmente educacional, hoje temos uma proposta repressiva, baseada na segurança do Estado”.
Leia a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Qual é o papel que o Estado tem relegado ao Degase?
Sidney Teles: O Degase hoje está no limbo do Estado, que não assume a concepção da medida socioeducativa como proposta de inclusão desses adolescentes. Ele caminhou no sentido de militarização desse sistema. Hoje, ele é baseado na proposta de controle dos corpos e não da promoção das vidas dessas pessoas que estão hoje cumprindo medidas socioeducativas.
O Estado relega ao Degase, esse departamento que seria norteador de políticas públicas para infância e adolescência no Rio de Janeiro, o papel meramente de contenção e repressão.
Que transformações você testemunhou nas duas últimas décadas no Degase?
Eu já atuava com adolescentes em conflito com a lei em 1991, ainda no tempo do Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (CBIA). A partir do ano seguinte, tivemos uma descentralização desse tratamento que abrangia todo o Estado brasileiro.
O Degase foi criado em 1993 aqui no Rio de Janeiro. Em 1994, foi realizado o primeiro concurso público para esse departamento. Esse concurso era baseado em teorias da educação, em pensadores da educação, e idealizado no governo de Leonel Brizola pelo secretário de Educação, que era o professor Darcy Ribeiro. A equipe preparou o edital do concurso totalmente voltada para a questão da educação.
É importante frisar isso para ver o quanto de retrocesso ocorreu no sistema de atendimento a adolescentes em conflito com a lei no estado do Rio.
De uma proposta totalmente educacional, hoje temos uma proposta repressiva, baseada na segurança do Estado e na insegurança dos profissionais que atuam dentro do sistema socioeducativo e dos e das adolescentes atendidos por esse sistema.
Na sua opinião, por que o Estado demorou tanto a colocar agentes mulheres naquela unidade?
Não se trata de ter demorado. Ele simplesmente abriu mão de atuar nessas unidades com agentes femininas. No concurso de 1994 foram abertas 150 vagas, 118 vagas para agentes masculinos e 32 para agentes femininos. Essas 32 agentes eram para essas duas unidades, o Educandário Santos Dumont, que agora vem a ser agora o Profº. Antonio Carlos Gomes da Costa, e Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (Criaad), em Ricardo de Albuquerque, na zona norte do Rio, destinado ao cumprimento de medidas de semiliberdade a adolescentes do gênero feminino.
O que houve foi um retrocesso, porque o início do processo foi priorizar agentes femininas em unidades de atendimento do gênero feminino.
Quando hoje você tem a maioria dos agentes masculinos atuando em unidades femininas e precisa de uma lei aprovada na Alerj [aprovada após as denúncias de abuso sexual de meninas] para que essa regra seja aplicada e respeitada, é porque houve um retrocesso. Não iniciamos em 1994 na atuação de unidades femininas com agentes masculinos.
Falta fiscalização de órgãos externos para verificação do cumprimento de leis, normas etc?
Não seria honesto colocar isso como regra, porque órgãos como a Defensoria Pública, na Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cdedica), e o Ministério Público têm atuado com presteza. Mas falta realmente material humano, o Degase é muito grande, se estende a todo o estado do Rio de Janeiro, com unidades de internação e semiliberdade em Campos dos Goytacazes, Volta Redonda, Barra Mansa, Macaé, Teresópolis, Nova Friburgo, na capital, em Duque de Caxias, São Gonçalo, Niterói, Nilópolis, é muito abrangente.
A própria Defensoria e o Ministério Público não têm pernas, mas se organiza para que isso seja possível. Há um órgão que deveria ser mais atuante nesse processo, que são os conselhos tutelares nas regiões das unidades. Eles não são devidamente equipados, não têm as equipes multidisciplinares, há uma falha que é decorrente da falta de investimento do Estado.
Que outro tipo de desrespeito aos direitos humanos esse sistema pode ou está cometendo?
São falhas que creditamos ao sistema como um todo, o Executivo, o Legislativo e principalmente o Judiciário. Vamos completar 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e não conseguimos cumprir as metas em sua plenitude. Se isso tivesse acontecido, estaríamos muito avançados. Aos que dizem que o ECA é uma lei muito avançada para a sociedade brasileira, eu respondo que a sociedade brasileira que avance para alcançar o Estatuto da Criança e Adolescente.
Tivemos 31 anos para reduzir drasticamente o número de adolescentes autores de atos infracionais cujos direitos básicos já foram violados muitas vezes a partir do não investimento na educação, na cultura, moradia, criação de postos de trabalhos, todas essas violações anteriores aos atos infracionais praticados por esses adolescentes.
É sempre importante deixar claro que as medidas socioeducativas têm a função de incluir esses adolescentes que em algum momento de suas vidas acabaram penalizados ao violarem leis do Estado.
Mas essas medidas possuem dois princípios que vêm sendo frequentemente desrespeitados. O primeiro é a brevidade, quanto mais breve a sanção, mais eficaz ela será. E o princípio da excepcionalidade, a privação da liberdade só se dará em casos excepcionais. Contudo, vemos isso ser aplicado com muita frequência em casos que não requerem esse tipo de procedimento legal.
Isso é contra o direito da plena defesa e do tratamento humanizado da pessoa. O único direito que a pessoa privada de liberdade perdeu foi o direito de ir e vir, os demais devem ser garantidos. O tratamento com dignidade é um deles, mas vemos o contrário disso nas unidades de internação, falta de equipamentos, deficiência de formação de alguns profissionais, e tudo isso faz com que o Estado viole frequentemente esses direitos.
Que estrutura ideal ou próxima da ideal poderia ser pensada para o Degase?
Essa estrutura a ser pensada para o Degase e para todo sistema de medidas socioeducativas no Brasil já existe em forma de lei, de resoluções e no próprio Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), mas a maioria dos estados não respeita, não acata, não cumpre a lei. O sistema está pronto, o Sinase é lei, deveria ter sido posto em execução há quase 10 anos.
O mais importante, e que não é feito, é a prioridade para as medidas em meio aberto, de responsabilidade dos municípios, como prestação de serviços à comunidade, medida que é muito mais educativa do que a restrição e internação, medidas de liberdade assistida em que os municípios têm responsabilidade em promover cursos profissionalizantes, acompanhamento nas unidades escolares, atendimento e promoção de acesso a equipamentos de cultura, de esportes e lazer.
Estamos falando de direitos que são violados tanto na primeira infância quanto na pré-adolescência e que refletem depois nesse sistema socioeducativo.
O Degase é a última trincheira que a sociedade tem para corrigir todas as falhas que ela praticou em relação a esses adolescentes, reparar todas as violações praticadas pelo Estado contra crianças que não tiveram o direito de viver sua infância plenamente como preconiza o artigo 4º do ECA.
Edição: Mariana Pitasse