Franco-atiradores estão matando manifestantes na Nicarágua

Diário Carioca

Por Wilfredo Miranda Aburto – Agência Pública – O projétil impactou Juan Bosco Rivas Martínez entre os olhos, onde começa o septo nasal. Foi um disparo preciso. O jovem de 23 anos se agachava para recolher uma pedra quando foi alcançado pela bala.

Caiu de costas e a sua cabeça bateu no pavimento. Não se sabe quanto tempo ele ficou inconsciente, mas quando voltou a si sentia que se afogava. “Eu senti também muita dor de cabeça. Era como se a minha cabeça fosse explodir”, recorda Rivas Martínez um mês e dos dias depois de ter sido ferido, no sábado, 21 de abril, nas imediações do bairro San Miguel, na cidade de Masaya, no oeste da Nicarágua.

Carlos Herrera/Confidencial Os familiares de Juan Bosco Rivas Martínez mostram os raios X que foram feitos no hospital Vivian Pellas. A bala não pode ser extraída da cabeça da vítima
Carlos Herrera/Confidencial
Os familiares de Juan Bosco Rivas Martínez mostram os raios X que foram feitos no hospital Vivian Pellas. A bala não pode ser extraída da cabeça da vítima

O estudante secundarista foi levado pelos seus “companheiros de trincheira” ao hospital público Humberto Alvarado, onde os médicos a princípio não queriam atendê-lo; os gemidos do jovem obrigaram-nos a agir. Tiraram uma radiografia e determinaram que ele fora ferido “por uma pedrada”. Porém, um otorrinolaringologista – o único que “se portou bem com meu filho”, nas palavras da mãe, Ana María Martínez – se escandalizou ao ver a radiografia.

Carlos Herrera/Confidencial Juan Bosco Rivas Martínez mostra a cicatriz deixada pela bala de AK que perfurou seu rosto
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Juan Bosco Rivas Martínez mostra a cicatriz deixada pela bala de AK que perfurou seu rosto

“O otorrino me disse que o que eu tinha era uma bala”, descreve Rivas Martínez, na sua pequena casa em Masaya. Um projétil de 23 milímetros de fuzil AK-47 que ficou alojado a um milímetro do forame magno, uma grande abertura através do osso occipital, na parte posterior do crânio, conduto por onde passam as terminações do sistema nervoso central e conecta o cérebro com a medula espinhal. É “um milagre” que ele esteja vivo, segundo os médicos que o atenderam.

 

Rivas Martínez conta a história em uma cadeira de balanço; ao seu lado tem um cesto de lixo repleto de papel higiênico. De forma constante, ele limpa os fluidos que escorrem do seu nariz. Embora sua recuperação esteja indo bem, o dano é irreversível. O septo nasal e o pomo da face direita foram destroçados pelo disparo.

 

“Sou uma prova viva da repressão. Os franco-atiradores que estavam no Mercado de Artesanatos disparavam para nos matar”, afirma o jovem artesão, que não poderá mais praticar boxe, esporte a que se dedicava antes do atentado.

 

Rivas Martínez é dos poucos que ficaram com vida depois de terem recebido disparos certeiros durante a repressão de abril por parte da Polícia Nacional e das forças paramilitares do regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua esposa, respectivamente presidente e vice-presidente da Nicarágua. O seu nome por pouco não termina na lista de 76 mortos que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) afirma ter recebido do governo nicaraguense.

 

O caso de Rivas Martínez ilustra totalmente o padrão dos disparos contra os manifestantes que têm tomado conta das ruas em diversas cidades do país desde o começo de abril, pedindo que o casal renuncie ao governo. São feridas letais na cabeça, pescoço e tórax. Os feridos mais graves por arma de fogo foram levados ao Hospital Antonio Lenin Fonseca, na capital, Manágua. A unidade de neurocirurgia tem estado cheia. São pacientes que chegam com crânio perfurado, rompido, e alguns com morte cerebral.

 

O site Confidencial obteve acesso a 19 tomografias realizadas no hospital Lenin Fonseca, entre as quais 15 correspondem a pacientes feridos com armas de fogo na cabeça. Pelo menos oito deles faleceram, segundo os médicos consultados. Suas identidades foram confirmadas pela reportagem e pelo Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh).

 

Impactos frontais

As tomografias revelam disparos precisos nos lobos frontal, parietal, temporal e occipital das vítimas. Outros foram na região cervical e no tórax. Crânios despedaçados com desvios da linha média cerebral, inflamações ou hemorragias graves. Salvar-se dessas lesões é muito difícil.

 

Os impactos de bala apresentam, na sua maioria, orifícios de entrada e de saída, trajetórias que deixam uma sequela de destruição na massa cerebral. Nas tomografias, pode-se ver como um sulco cinza aberto pelo projétil, que deixa, em alguns, lascas de chumbo ou osso espalhadas pelo caminho. São balas poderosas.

 

A reportagem consultou um médico especializado em balística para obter sua análise sobre as tomografias do Hospital Lenin Fonseca. “Segundo o que eu vejo, eles disparavam com ‘precisão científica’: direto, para matar”, afirma o médico, que pede para manter sua identidade em anonimato por questão de segurança. Esse médico diz que viu muitas feridas parecidas quando prestava auxílio durante a guerra civil na Nicarágua, nos anos 1980.

 

“São balas de alto poder. São fuzis, armas de guerra. Não são pistolas”, assegura um expert em balística.

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Os parentes de Juan Bosco Rivas Martínez mostram as balas que conseguiram pegar no local onde o jovem foi ferido

“Jefferson Flores Medrano. 25 anos. Trajetória da bala de cima para baixo. Entrou pelo lobo frontal e saiu no parietal occipital. Ferida tangencial de uma bala de alto poder, porque fraturou em múltiplos pedaços o crânio durante a trajetória. Um traumatismo craniano”, detalha o médico enquanto analisa as tomografias. O dano ósseo pode ser observado melhor quando o médico comanda o software para que mostre a tomografia em 3D: crânios lascados, rachados, maçãs do rosto explodidas…

 

O médico não pode avaliar o projétil que assassinou Flores Medrano porque ele não está em seu corpo: atravessou a cabeça; mas não há dúvida de que é uma bala de fuzil, como na maioria das vítimas. No caso de José Alfredo Leiva, foi um disparo de AK-47; e no caso de Nesker Velázquez, uma escopeta. No caso de Kevin Dávila López, se trata de uma bala circular, de 1,85 centímetro de diâmetro.

 

“É um orifício circular. Essa munição não se encontra em nenhuma loja de armamentos. É uma bala especial de uso exclusivo das forças policiais. A esfera metálica entrou na região do lobo frontotemporal direita e ficou alojada na região frontoparietal esquerda”, determina o expert. A bala pode ser vista alojada no cérebro. Por ser um projétil de menor potência, o médico acredita que o disparo não foi feito de muito longe.

 

Disparos desde “posições privilegiadas”

A tomografia de Darwin Medrano, realizada em 22 de abril às 22h42 no Hospital Lenin Fonseca, revela uma trajetória de bala de cima para baixo. Entrou pelo nariz e terminou na base esquerda do crânio, de maneira muito semelhante ao caso de Rivas Martínez.

 

As trajetórias de balas de cima para baixo fazem as vítimas e familiares acreditarem que a polícia usou franco-atiradores. Em Estelí, cidade do noroeste nicaraguense, as mães de Orlando Pérez e Franco Valdivia garantem que os atiradores estavam posicionados na sede da prefeitura. Ambos os universitários foram feridos de forma mortal no tórax e no rosto, respectivamente.

 

Diante da falta de autópsias nas vítimas da repressão por parte do Estado, as tomografias do Hospital Lenin Fonseca trazem informações valiosas para o esclarecimento dos crimes.

 

“Quem disparou no meu irmão estava em uma posição privilegiada. Ele pôde se colocar no alto. A trajetória da bala é da esquerda para a direita, entrando pelo olho esquerdo, e ela fica alojada na parte direita”, denuncia Francis Valdivia, irmã de Franco, depois da vítima ter sido exumada para que se fizesse a autópsia.

 

Os testemunhos dos cidadãos em Manágua também coincidem no uso de franco-atiradores “dentro do Estádio Nacional de Beisebol” – teriam se posicionado ali para atacar os manifestantes que se reúnem diante do local. Um deles supostamente acabou com a vida de Álvaro Conrado. O menino de 15 foi ferido no pescoço.

 

O site Confidencial recolheu também dezenas de depoimentos de testemunhas oculares sobre franco-atiradores na cidade de Matagalpa, no centro do país, no dia 15 de maio, quando a polícia reprimiu com violência. Os enfrentamentos deixaram três mortos. Cidadãos e universitários denunciaram a presença de franco-atiradores nos morros de Calvario, Apante e San Francisco, que circundam a cidade.

 

Nesse dia foi assassinado José Alfredo Urroz Jirón, um professor de 28 anos. Essa morte foi atribuída a “grupos vândalos de direita” pelo prefeito Sadrach Zeledón. Segundo o governo de Ortega-Murillo, os bloqueios na estrada impediram que a ambulância chegasse mais rápido ao Hospital Lenin Fonseca para evitar a morte do professor.

 

A tomografia de Urroz Jirón em poder do site Confidencial mostra uma das execuções mais letais entre todas as vítimas. Com exatidão, o projétil entrou na linha média do crânio, via lobo parietal-occipital, e ao sair pela frente estourou todo o osso. “Ele não se salvaria nunca desse disparo. Essa é uma bala de alto poder, porque não ficou só na cabeça. Balas desse calibre são da polícia”, insiste o expert em balística.

 

O informe preliminar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) recolhe denúncias sobre a presença de franco-atiradores no Estádio Nacional Dennis Martínez e em Matagalpa. O organismo concluiu que “esses graves eventos indicam a possibilidade de que se tenham registrado execuções extrajudiciais”.

 

“A CIDH considera que a força potencialmente letal não pode ser utilizada meramente para manter ou restituir a ordem pública. Somente a proteção da vida e da integridade física diante de ameaças iminentes pode ser um objetivo legítimo para usar dita força. A Nicarágua deve implementar de forma imediata mecanismos para proibir de maneira efetiva o uso da força letal como recurso nas manifestações públicas”, exorta o informe preliminar.

 

Os casos do Hospital Vivian Pellas

Depois que o otorrinolaringologista viu a bala que Juan Bosco Rivas Martínez tinha na cabeça, outros médicos realizaram um tamponamento nasal para conter o sangramento profuso. O procedimento foi feito sem anestesia, algo considerado “crueldade” por um médico consultado pela reportagem. “Como a anatomia do seu rosto estava destroçada, o paciente deveria ter sido sedado. Porque sem anestesia trata-se de um procedimento às cegas e sob o perigo de que as lascas de osso afetassem os olhos. Sem dúvida foi cruel”, explica.

 

Os gritos de dor do jovem foram escutados pela sua mãe, Ana María Martínez, na entrada da emergência do hospital público de Masaya. Ela assegura que um policial vestido com uma jaqueta preta tirava fotos e registrava em um caderninho os nomes dos feridos que chegavam ao centro hospitalar.

 

Eliecer Aguirre Centeno foi assassinado na cidade de Sébaco, também no centro do país, em 14 de maio, depois de um ato público feito pelo monsenhor Rolando Álvarez, a procissão do Santíssimo (ações católicas têm sido palco para protestos contra o governo). O disparo fraturou totalmente o crânio, como se pode ver na tomografia.

 

Ana María insistiu com o recepcionista para entrar na emergência do hospital. Ali estava o seu filho se retorcendo na cama. “Seu rosto estava monstruoso, seu olho quase saindo”, narra a mãe. No dia seguinte, depois de ter vomitado sangue durante toda a madrugada, os médicos do Hospital Humberto Alvarado fizeram outro tamponamento na sala de cirurgia. Dessa vez, sim, ele foi sedado

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O projétil AK estava alojado na linha média do cérebro

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O jovem passou uma semana em uma cama de hospital sem maiores cuidados e com o mesmo tamponamento nasal. Sua condição piorava. Os familiares estavam desesperados. Escutaram que o hospital privado Vivian Pellas estava atendendo gratuitamente os feridos do massacre de abril – como é conhecida a repressão recente na Nicarágua, o maior massacre em tempos de paz da sua história. O padrasto de Rivas Martínez, Lester Ruíz, foi ao hospital da capital, onde os médicos responderam de imediato. Rivas Martínez foi transferido sem oposição dos médicos de Masaya. Sua ficha hospitalar dizia “contusão por pedra”, e não por bala, dizem os familiares.

 

Médicos que alugam consultórios no Hospital Vivian Pellas formaram um grupo para atender os feridos. Eles receberam dezenas de pessoas, entre elas feridos com balas na cabeça. Como no Hospital Lenin Fonseca. Os médicos ficaram surpreendidos ao ver o estado de Rivas Martínez. De imediato realizaram uma endoscopia para identificar as lesões. Viram que era impossível operar o jovem. Extrair a bala de AK-47, tão próxima da estrutura vital do forame magno, podia causar a sua morte ou deixá-lo tetraplégico. Tiveram de deixá-la ali.

 

Os médicos do Hospital Vivian Pellas colocaram um tamponamento nasal mais sofisticado em Rivas Martínez. “Voltei a respirar pelo nariz. Foi um alívio, como quando você respira pela primeira vez quando nasce”, diz o rapaz.

 

O acompanhamento médico no Vivian Pellas ainda está em andamento. Rivas Martínez está melhorando na sua casa, em Masaya. Mas o seu estado psicológico é frágil. Embora ele não saiba o que aconteceu à sua volta enquanto estava tombado no pavimento, sabe-se que ele viu a sua namorada, grávida, quando perdia a consciência.

 

“Ela agarrou a minha mão. E disse: ‘Não se vá, lembre que esta criança está a caminho’. Isso me fez aferrar-me”, diz, com os olhos chorosos, ansioso para conhecer o seu filho, que está para nascer. No topo do seu nariz, sobrou a cicatriz do impacto de AK-47.

 

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Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca