Raquel Rolnik: “O bolsa-aluguel é o verdadeiro combustível para novas ocupações”

Diário Carioca

Por Caio Castor – Da Agência Pública – Entrevistada durante uma visita à ocupação São João, no Hotel Columbia, no Centro de São Paulo, a urbanista Raquel Rolnik avalia que as intervenções que levam às violações na cracolândia e também a falta de solução do poder público para os moradores do prédio Wilton Paes de Almeida, que desabou no largo do Paissandu, no Centro de São Paulo, são consequência de “uma guerra dos lugares no centro”.

Segundo ela, há décadas o Governo do Estado e a Prefeitura tentam induzir uma transformação da ocupação do centro na tentativa de abrir uma nova fronteira para o chamado complexo imobiliário-financeiro.

Caio Castor/Agência Pública  “Não existe nenhum aluguel de R$ 400 no mercado, nem sequer nas favelas que já têm melhor infraestrutura”, diz Rolnik
Caio Castor/Agência Pública
“Não existe nenhum aluguel de R$ 400 no mercado, nem sequer nas favelas que já têm melhor infraestrutura”, diz Rolnik

Nesta entrevista, a autora de ‘Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças” fala ainda sobre a criminalização dos movimentos de moradia, o uso do bolsa-aluguel e a estratégia dos Planos de Intervenção Urbana (PIU) pela Prefeitura Paulistana.


Como você avalia a política de habitação no Centro de São Paulo e a utilização do bolsa-aluguel pelo poder público?


A história da moradia da população mais pobre e vulnerável na cidade de São Paulo é a história da transitoriedade permanente e deslocamentos sem parar. Nós já encontramos trabalhando no Observatório das Remoções pessoas que foram removidas dos lugares em que viviam, oito, dez, 12 vezes, pessoas que tiveram que se mudar uma vez porque não conseguiram pagar o aluguel, seja ele formal ou informal, e depois foram para uma ocupação, e essa ocupação sofreu uma reintegração de posse e tiveram que sair dessa ocupação reintegrada para ir para uma outra ocupação, para uma favela…E por quê? Porque quando houve atendimento – e na maior parte não houve atendimento nenhum – nenhuma pessoa, nenhuma política pública chegou ali para ver o que essas pessoas precisavam, o que elas necessitavam, quem eram elas.


Quando isso aconteceu, colocaram o nome delas, o nome dessas famílias, num cadastro, como é o caso das remoções provocadas pela própria Prefeitura ou pelo Governo do Estado, por exemplo, como essas que continuamos assistindo, que estão acontecendo nos Campos Elíseos, na cracolândia.


Então, quando há um cadastro, há o nome numa lista, supostamente com 170 mil famílias que podem receber um atendimento futuro e, imediatamente, um bolsa-aluguel. O bolsa-aluguel de R$ 400 por mês é o verdadeiro combustível para novas ocupações – e entendendo ocupações tanto ocupações de prédios vazios na área central como ocupações de terrenos vazios, favelas nas extremas periferias, que é o que nós vemos explodindo em São Paulo hoje.


Não existe nenhum aluguel de R$ 400 no mercado, nem sequer nas favelas mais consolidadas, as que já têm melhor infraestrutura, mais bem localizadas. A alternativa dos R$ 400, portanto, é uma alternativa de constituir uma nova ocupação, seja ela nas franjas da metrópole, seja ela nos prédios vazios e subutilizados.


O que a gente percebe nesses múltiplos e constantes deslocamentos a que é submetida a maior parte da população é que a vida dela vai ficando cada vez mais difícil e vulnerável, na medida em que sai de um lugar em que conseguiu construir uma mínima rede de apoio e laços – que tem a ver com a frequência em equipamentos públicos da região, dela mesmo, na área da saúde, das crianças. E tem um recorte de gênero muito forte. A maior parte das pessoas vulnerabilizadas, que não têm onde morar e sofrem esses processos constantes são, na sua grande maioria mulheres, especialmente mulheres sozinhas com filhos.


Você poderia fazer uma análise do contexto de disputa imobiliária em que o prédio Wilson Paes estava inserido?


Nós estamos falando de um contexto onde está acontecendo uma verdadeira guerra dos lugares no Centro de São Paulo. Há décadas, o Governo do Estado e a Prefeitura também tentam, de alguma forma, induzir uma transformação da ocupação do centro, que hoje é um território popular.


O centro, hoje, é um território popular não apenas em função de um grande número de ocupações organizadas de moradia, da favela do Moinho, e também pela presença de inúmeras pensões, cortiços, hotéis, situações de moradia extremamente precárias, mas que representam uma alternativa a quem vive ali. A ideia de limpar esse centro desse território popular é uma ideia que vem sendo desenvolvida e experimentada por parte das políticas do Governo do Estado e da Prefeitura. Desde as intervenções no sentido de produzir equipamentos culturais para começar a transformar esses cenários e atrair novos moradores até as intervenções extremamente perversas que são as parcerias público-privadas habitacionais que, em tese, têm o discurso de trazer habitação para o centro, mas na verdade não oferece uma alternativa para essas pessoas que estão em situação de precariedade, morando no centro. Pelo contrário, remove as pessoas, as joga numa situação ainda mais vulnerável em nome de construir moradia para uma população que não é exatamente a população que está vivendo ali e que tem renda muito mais alta.

Agência Brasil  Escombros do edifício Wilson Paes de Almeida, que desabou no Centro de São Paulo
Agência Brasil
Escombros do edifício Wilson Paes de Almeida, que desabou no Centro de São Paulo

Como essas operações mais recentes na cracolândia e os atuais Planos de Intervenção Urbana (PIU), como o PIU do Terminal Princesa Isabel, se inserem nesse contexto de disputa do centro?


A existência de PIUs é a mais nova estratégia da Prefeitura na direção de procurar mudar completamente a composição social e econômica de quem vive no centro. Esses PIUs que estão associados neste momento, na Prefeitura, à concessão dos terminais oferecem ao concessionário que ganhar a concessão dos terminais a possibilidade dele desapropriar um raio enorme em volta dos terminais, pagando a desapropriação, para depois explorar isso como shopping center, torres corporativas, enfim… o tipo de produto imobiliário capaz de trazer para ele uma rentabilidade muito grande sobre o capital investido.


Então há claramente uma estratégia, uma tentativa de abrir uma nova fronteira aqui no Centro de São Paulo para o chamado complexo imobiliário-financeiro, que encontra na política pública, por incrível que pareça, em vez de uma barreira ou espaço de negociação no sentido de criar um centro múltiplo para todos, um espaço de indução da tomada do centro por esse setor.


Com a tragédia do Wilson Paes, houve, na sua visão, uma tentativa de criminalização dos movimentos de moradia?


A partir dessa tragédia que atingiu uma das ocupações da área central, há um enorme perigo, neste momento, de criminalização das vítimas. Na verdade, as pessoas que hoje vivem em ocupações são vítimas de um duplo abandono: de um lado, o abandono histórico dos proprietários dos seus edifícios, na expectativa do momento em que eles possam oferecer uma rentabilidade grande no futuro; então, claramente, uma posição de especulação. E mais: a submissão do poder público a essa lógica sem penalizar os proprietários desses prédios, mesmo com toda uma legislação que permite e direciona para que se faça essa penalização, como parcelamento e edificação compulsória, IPTU progressivo no tempo etc., junto com uma inexistência de entender e atender esse estado de emergência habitacional que nós estamos vivendo na cidade de São Paulo hoje. Criminalizar os movimentos é se eximir da culpa de quem são os verdadeiros culpados por essa política.

 

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Equipe de jornalistas, colaboradores e estagiários do Jornal DC - Diário Carioca