A assinatura de acordo de cooperação pelos presidentes do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, desembargador Henrique Carlos de Andrade Figueira, e do presidente do Procon-RJ, Cássio Coelho, nesta terça-feira (22/3), vai permitir que consumidores superendividados recebam atendimento especializado para resolver suas pendências financeiras. A parceria foi firmada durante o ‘I Seminário sobre Prevenção e Tratamento do Superendividamento’, realizado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro com apoio do Procon-RJ. O evento, realizado no Tribunal Pleno, foi acompanhado por mais de 200 pessoas presencialmente e outras 1,5 mil on-line.
O encontro reuniu magistrados, intelectuais, empresários e autoridades do estado em debates sobre o crescente endividamento dos consumidores. Segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio, em setembro de 2021 o endividamento já atingia 74% das famílias brasileiras. De acordo com o levantamento, 25,5% dessas famílias tinham contas ou dívidas em atraso e 10% não sabiam como pagar suas dívidas. E com o crescimento das contas e dos juros, o caminho é um só: o superendividamento.
Para o consumidor que chega nesse limite a chance de arcar com pagamentos sem comprometer suas necessidades básicas, como saúde e educação, é nula. Mas como sair do ciclo vicioso em tempos de inflação alta e economia em baixa? Especialistas são unânimes em destacar que a educação financeira, voltada para o consumo consciente, é um componente importante para a mudança do cenário.
De acordo com o desembargador do TJRJ Werson Rêgo, especialista em Direito do Consumidor, a recente alteração no Código de Defesa do Consumidor com a criação da lei federal 14.181/21, que estabeleceu mecanismos para auxiliar consumidores que não conseguem mais arcar com as prestações de empréstimos ou de compras no crediário, vai gerar um aumento no número de demandas judiciais. Antevendo-se a isso, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, desembargador Henrique Carlos de Andrade Figueira, e o presidente do Procon-RJ, Cássio Coelho, assinaram o acordo de cooperação.
O desembargador Henrique Carlos de Andrade Figueira reafirmou que o Judiciário fluminense está em alerta quanto às questões apresentadas pela sociedade.
“O Judiciário deve estar atento aos movimentos sociais, todos desaguarão na Justiça. O TJRJ sempre tem essa preocupação, em como atuar para buscar a paz social. Precisamos tomar medidas para trazer de volta a possibilidade de quitação dessas dívidas dentro de padrões aceitáveis. Buscar equilíbrio entre o prestador de serviço e o consumidor para evitar excessos, de modo que as pessoas consigam cumprir com suas obrigações”, disse o desembargador, que defendeu a mediação como forma de solução de conflitos.
Cenário de crise exige cautela
Ao destacar que o superendividamento é um problema econômico, social e jurídico, o desembargador Werson Rêgo afirmou que o cenário preocupante, com inflação alta e taxa de desemprego de 11,1% no último trimestre de 2021, exige cautela e, principalmente, educação financeira. Em sua apresentação, o magistrado exibiu dados que mostram que o percentual de famílias brasileiras com dívidas cresceu em dois anos, passando dos 65,6% em dezembro de 2019 para os 72,9% de agosto de 2021. Em agosto, um a cada quatro brasileiros endividados não estava conseguindo quitar as dívidas no prazo.
Além da preocupação com o endividamento das famílias brasileiras ao longo desses últimos anos de crise econômica, o atual cenário de inflação gera também receios em setores que dependem do bom quadro econômico do país e de uma renda segura dos cidadãos. O consumidor que antes fazia trocas no mercado, optando por marcas mais baratas ou substituindo os produtos, agora chega a retirar da lista de compras alguns itens.
De acordo com dados de uma pesquisa feita pela Associação de Supermercados do Estado do Rio de Janeiro (ASSERJ), 88,7% dos entrevistados passou a consumir mais frango do que carne por causa dos preços. Além disso, 80,4% dos participantes afirmaram que trocaram produtos de marcas mais caras pela as mais baratas. A pesquisa foi feita em supermercados nas Zonas Sul, Norte e Oeste do Rio e na Baixada Fluminense. Processo judicial não é a melhor forma de resolver o problema, diz presidente do Nupemec
O presidente do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec) do TJRJ, desembargador César Cury, afirmou que o superendividamento é um problema social, econômico, individual e institucional grave, havendo uma quantidade significativa de demandas judiciais decorrentes direta ou indiretamente do superendividamento.
“Não ficamos um dia sem receber pelo menos um processo neste sentido nas câmaras”, contou, citando que o consumidor também é atingido pela pressão social e psicológica das estratégias de marketing, gerando constrangimento.
Para o magistrado, a ação judicial não é a melhor forma de resolver o problema. “Os processos chegam impessoais. Não sabemos o que há por trás daquela história. Sou contra usar o processo judicial como primeiro e único instrumento para resolução de conflitos”, disse, completando: “O consumidor está em posição subalterna em relação ao fornecedor de produto ou serviço, que tem um tratamento diferenciado quando está em crise financeira. O consumidor precisa de uma estrutura de proteção”, destacou.
O magistrado comemorou o acordo assinado com o Procon. “O que estamos fazendo aqui é abrir as portas do Tribunal para que o consumidor encontre um ambiente seguro para um tratamento individual. É um tribunal multiportas, acessível de várias formas, de várias modalidades”, afirmou.
Mutirões para quitação de dívidas
De acordo o presidente do Procon, Cássio Coelho, a autarquia vem realizando, desde 2019, mutirões a fim de combater o superendividamento. De lá para cá, diz, 31.500 consumidores foram atendidos nos eventos promovidos para a negociação de dívidas com planos de saúde, telefonia, educação, concessionárias de serviços públicos, entre outros, com um índice de 80% de acordos.
O presidente destacou que o aumento do superendividamento está ligado a alguns fatores, como a diminuição do poder de compra das famílias brasileiras, o desemprego e a inflação. Para Coelho, a mudança de cenário exige diferentes soluções, como o restabelecimento da capacidade de crédito destes consumidores, a redução da judicialização como forma de solução para restabelecer a vida financeira do consumidor.
Endividamento x superendividamento
De acordo com a professora da Universidade de São Paulo (USP) Juliana Domingues, os problemas de endividamento e superendividamento não são de hoje, mas se diferenciam. Todos que têm alguma dívida a pagar, como parcelas da compra de um imóvel ou de um automóvel, por exemplo, são endividados. Já o superendividado não consegue quitar suas dívidas sem prejudicar o mínimo existencial. “A educação para o consumo é fundamental”, defendeu.
Ela aponta que entre os problemas enfrentados pelo consumidor que geram situações de endividamento estão o envio de cartões não solicitados e os juros abusivos cobrados sem o entendimento prévio do cliente. Para a professora, o consumidor fora do mercado de consumo gera perdas para todos. “O acesso ao crédito traz bem-estar social para o consumidor. Estamos falando de cidadania aqui”, disse.
Professor de Direito Comercial da Universidade Federal Fluminense (UFF), Edson Neves abordou as pressões que o superendividado acaba por receber, seja de ordem material ou psicológica. “O superendividado é empurrado para o caminho possível que se abre para ele, que é um caminho de troca de dívida. Vai de endividamento para endividamento, visto como fracassado para a sociedade, está excluído do jogo”, afirmou